13.12.21

Os anos ('Nacos' 8)









Os anos nom som só cabelos brancos 

rugas e olhos cansados 

os anos manifestam-se sobretudo na alma

coraçom 

sétima circunvoluçom do cérebro 

consciência 

ou como queiram chamá-la 


Os anos criam ao redor dela uma costra oleosa 

interessante cientificamente qual óvulo 

onde esbaram as saetas 

que dantes tam profundamente incidiam 

e apenas a alcançam aquelas que encontram o seu ponto 

fraco 

fecundando-a de sentido 


Si, sentido 

que parece recobram os jovens 

caminhando decididos a patinar nas pegadas experientes dos anos 

e daquela caem na conta 

que maravilha o vivido por viver 

e o sabido sabido 

—Achas? 


Se o emocionante é cair? 


Nom, melhor é erguer-se 

ainda com mais força 

ainda em quente 

sem sentir a dor 

que o frio dos anos faz sentir 

de todas as quedas da vida 

e daquelas que podam faltar 


—Falas dos anos que nom tés 

nom viveste nem conheces 

Só falo daquilo que penso 

já verei o que baralho quando os tiver 

—O quê vais ter… 

eles terám-te a ti! 

E ti como o sabes?! 


—Nom o sabia 

dixo-mo o olhar dessa velha cega 

que me trespassa e sorri 

pois conhece o assunto que tratamos 

Olha que inventas! 

—O mesminho ca ti 

ou é que nom vês o atrapada que ela está? 


Estás ti ela voa 

ou nom o sentes? 

(Breve lapso de reflexivo silêncio) 

—Sinto estarmos a malucar aqui as duas… 

(Rolda de gargalhadas

seguida de um abraço cúmplice) 

Nem que tivesses algo melhor que fazer! 


(E ao nom responder outorgou) 



by Eva Loureiro Vilarelhe




25.11.21

Aquel filho ('Cantos contos' 2)








Se nom perdesse aquel filho todo seria diferente… Já deve ser tarde. Sempre a cismar no mesmo! Deixa estar o filho. É hora de erguer-se e acender o lume. A claridade da janela nom é moita porque o dia está escuro, e frio. Tenho ganas de ficar um dia enteiro na cama. Sindo já deve estar em pé a esperar por mim. Podia fazê-lo hoje. Digo-lhe que estou enferma e fico na cama o resto do dia. Total para o que hai que fazer… Deixo-me estar na cama. Hoje nom tenho ganas de fazer nada. O resto dos dias tampouco fago moito mais. Mas assi polo menos vario de posiçom. Nom fago nada deitada. Em horizontal, em lugar de em vertical. Menuda parvoíce! 


Já é dia. Sindo vai vir procurar-me. Vai vir ver se estou bem. Coitado. Direi-lhe que acenda a lareira, com coidado de nom queimar-se, que estou cansada e que me ergo mais tarde. Ainda nom sei como fai o que fai… Tampouco sei o que foi que me dixo que queria para o jantar. Onte decidimos algumha cousa, mas nom consigo lembrar. Ainda hai algo de caldo de onte. Penso que tinha em mente aproveitar a carne cozida. Nom sei, já verei. Ole a café, deveu aquecer o que sobrou da tarde. Espero que nom o fervesse. É estranho, nom tenho fame. Está-se quente aqui. Chove a eito. Mamai gostava tanto da choiva… passava o tempo todo a olhar pola janela mentres chovia. 


Eu gosto de escoitar como bate contra os vidros. Quanto mais forte mais se me arrepia o corpo. Sindo do que gosta é das saraivadas. Vai todo apressado recolher as bolinhas em quanto escampa, e joga com elas sorrindo como um meninho. Ainda me lembro del de cativo, o nosso irmao mais novo e bem parecido... Tinha um sorriso tam doce que nom se notava nadinha que era tam parvo. Agora vai velho, e está igual de feio e torpe que os demais. Parece mentira como passam os anos… parece que foi onte quando perdim o meu filho, e já logo vai para sessenta anos. Bem, ainda nom, cinquenta e cinco em setembro. Os meus dezassete anos, quem mos dera… mas sabendo o que sei hoje. Nom voltei estar com outro home. E quando me apeteceu já era tarde demais. A parva som eu! 


Ainda que o certo é que pouco ia ganhar estando com homes. Meu filho nom ia voltar por isso. Sempre a barrenar no mesmo. Já me dirás como havia mudar a minha vida cum filho! Nom sei… igual já nom estaria eu aqui soa a coidar dum pobre apoucado. Melhor umha pequena. As mulheres sempre ficam na casa. Fosse preferível nom perdê-lo, despois de passar a vergonha. Nunca dixem de quem era. Para que? Para ver a meu pai tragar o orgulho, como quando foi onda o moço da Pura dizer que havia um pequeno? O rabudo aquel nom reconheceu diante dos seus que lhe enchera a barriga à minha irmá mais velha. Papai, cheio de carrage, dixo que vinha por ela e nom pedir cousa algumha, que um cativo na sua casa criava-se coas faragulhas da mesa. 


Nom. Preferim nom voltar vê-lo passando por aquilo. E afinal tampouco houvo necessidade. O pequeno nom naceu. A tremenda malheira que levei como castigo por ficar prenhe acabou de vez coa prenhez. Eu desaparecim mais dumha semana. Maçada coma um polvo, mandei recado à casa de que fora visitar os tios da Nogueira, e que ficava onda eles uns dias para ajudar a apanhar nas patacas. A prima Aurora tivo-me escondida no celeiro e salvou-me a vida, ao vir canda mim à noite coa velha das ervas. Coa de paus que levara, bastante me custou atravessar o monte por fora dos caminhos para que me nom vissem. E logo nom havia maneira de conter a hemorragia, a velha fijo todo o que sabia, e eu bem via que nom as tinha todas consigo. Fiquei maninha para sempre. 


O malnacido ao que me entreguei jamais me tivo o mais mínimo afeto. Moito me doeu reconhecê-lo... Moito mais do que a tunda! Por moito perdom que vinhesse pedir-me despois. Umha vez recuperada, eu maila minha figura esguia, tentou fazer-me as beiras de novo. Respondim com umha figa. Home enriba de mim nunca mais, jurei daquela… nem viva e, agora já, nem morta! O pior foi para o meu pobre pequeno… a pequena, prefiro pensar que era umha pequena. E bem foi nom confessar jamais o nome do pai. Nem a porfia da Aurora, raivosa por descobrir quem me batera, conseguiu tirar-mo da boca estando eu desvairando pola febre. Para que? Ia isso devolver-me o meu filho? Nem sequer que os meus irmaos me vingassem indo trás del merecia semelhante indesejável. 


À minha irmá Pura saiu-lhe bem, criou o seu neno numha casinha que lhe construiu o papai numha das leiras baldias, e o Manel nom casou até ela morrer. Eu nom pedia tanto. O home botou umha morea de anos de moço coa Assunçom e forom pais quase de velhos. O bom é que agora nom estam sós, tenhem um rapaz que se ocupa deles e das terras desde o acidente, e dis que aí lhes vem um neto em caminho... Vou ter que ir pensando em erguer-me. Nom vaia ser o demo que o Sindo se queime, se cadra é por isso polo que nom está ainda a espreitar-me através da fresta do batente. O caso é que me doem todos os ossos se me movo. Que vai ser de nós quando eu já nom o poda atender? Se nom perdesse aquel filho todo seria diferente… 




by Eva Loureiro Vilarelhe




7.11.21

Como som ('Nacos' 7)









Às vezes digo cousas tam cruamente que me assusto

nunca me cheirou bem a carne fresca

se calhar por isso prefiro comer verdura

todavia nem pestanejo ante umha ferida aberta

como som decididamente omnívora


Crudívora deveria talvez dizer

porque gosto das cousas como som

sem lenitivos nem panos quentes

sem cozinhar nem moito menos deglutidas

de nojo jamais hei enrugar o nariz 


Ou si que o enrugo nalgumha ocasiom

mas perante as cousas que nom me convencem

a cor de rosa nom vai comigo já digo

atende se pretendes entrar na minha dimensom

e desvendar como som de virtual



by Eva Loureiro Vilarelhe




21.10.21

O coelho da Alice ('O coelho da Alice' 7)









Estou com pressa. Como nom me ponha a trabalhar já vou estragar a tarde, que me conheço. Nom tenho tempo que perder. Essa é talvez a sina da minha vida. O coelho da Alice, um afeiçoado ao meu lado. Hai avisos colocados estrategicamente e luzes de emergência acesas polos lugares mais visíveis do meu cérebro, mesmo que nom estou segura de qual é o motivo. A que vem tanto escândalo! Estou com pressa —coma sempre— e devo fazer algo mais —aparte do de sempre—, mas nom sei o que. Só tenho claro que é imperativo que o leve a cabo. 


No entanto, nada me impede observar durante mais de sessenta interminavelmente fixos segundos um pelo minúsculo que destaca na pele macia da minha perna esquerda, sem decidir-me porém a erguer-me na procura da pinça para arrancá-lo daí, porque a sua presença me está realmente a incomodar. Mesmo assi, ando a pensar naquilo que tinha que lembrar sem falta e está a fugir da minha cabeça, já que o maldito pelo —que continua onde o encontrei— está a distrair-me. 


Ando cansada, demasiado cansada. De tanto andar apressurada, principalmente. Nom tenho tempo para lamúrias, nem moito menos para pelos indecentes que aparecem em momentos inadequados. Estam a bater à porta. Acordarei agora deste letargo a seguir ao jantar que tanto detesto, porque parece que derrete a noçom espaço-temporal em que vive instalado o ser humano capitalista de... ocidente? (sempre tivem problemas cos pontos cardinais, mas um inato sentido da orientaçom co que consigo nom perder-me nunca, e menos de mim mesma). 


Será o carteiro? Nom, que só vem de manhá. Em realidade é mulher, mas sempre di: carteiro. Compreensível o motivo. Nom abro. Nom tenho vontade de me erguer. Bom, assi tamém arrancava o pelo… Que se lixe! E o pelo tamém. Quero é durmir! Nom, nom podo. É preciso que responda o mail da Paula. Urgentemente. Já estou atrasada de mais! Só agora é que lembrei. Angustia-me encarar às persoas que mais apreço, daí que opte por evadir-me com histórias minhas… Por fim, era isso! Por que será que esqueço o verdadeiramente importante e lembro qualquer tontaria? Ainda bem que bateram à porta… 


Como explicar o que sinto e por que sinto o que sinto? Como fazer-me entender quando nom me entendo nem eu? Como escapar das suas perguntas agora que som diretas e detesto mentir a umha amiga? Como suportar a sua olhada recriminadora  quando veja que nom vai obter as respostas que procura? Como safar-me desta vez sem que a nossa amizade se ressinta? Como afrontar que Paula suspeita o que sucede entre nós ignorando toda a —nossa(?)— história? Como reprimir o meu coraçom dentro do peito quando pula por amar de portas afora? Como suportar a ausência do alvo deste amor que me consome precisamente por ignorar a imensidade da minha paixom? Como…?


“Onde andas? Acabo de passar pola tua casa e nom estavas. Só queria conversar contigo sobre o assunto do meu correio, como nom respondeste…” 


Fatiga-me dar explicaçons. E moito mais por WhatsApp. Co apressada que ando e agora ainda por cima tenho que perder mais tempo com argumentaçons evitáveis. Desisto. Respondo só por e-mail e listo. Co atraso que levo hoje, é perfeitamente entendível que o faga. Mas já viu que eu vim a mensagem, e se nom responder tamém por aqui… Que se lixe! E o pelo tamém! Estou farta de justificar-me. —De depilar-me tamém?!— Bem é certo que, se se fai o que se deve em todo o momento, reduzem-se consideravelmente as oraçons deste tipo que é necessário formular. Mas quem sabe que eu realmente nom figem o que devia e quando? Abreviando, pois! Que estou com pressa…



by Eva Loureiro Vilarelhe




7.10.21

Comum idade ('Cantos contos' 1)







Moura vivia num triste andar alugado polos seus pais. Dava-se bem com eles, mas do que mais gostava era de sonhar com viver pola sua conta. Perto das leiras que rodeavam a sua vila, preferivelmente. Falaram-lhe dum deus, mas tinha outras cousas mais importantes nas que pensar. Nom conhecia um tal Kant, mas compreendia que havia cousas necessárias que deviam ser feitas por dever e sem qualquer condicionante externo. Tinha as suas próprias ideias e projetos. Lia pouco, isso si, porque a cidade co enorme prédio forrado de livros ficava a dous autocarros ou mais de duas horas a pé, e as noites eram escuras.


Cos seus escassos estudos, Moura nom conseguira arranjar emprego. Tampouco parelha —nem falta que lhe fazia—, porque ansiava ser independente. O que tinha era amigas e amigos, todos eles com algo em comum: essa idade complicada, a da juventude. Decidiu falar-lhes claro. Tomarom-na por louca, mas pouco havia onde escolher e forom trás dela até os terrenos baldios junto ao adro da igreja. Nom conservava as janelas a antiga escola que ficou sem miúdos, o telhado figera-se compadre da choiva e convidava-a a entrar na casa. Encontrarom a porta aberta. Moitas luzes nom tinham, mas de seguida prepararom fachos para acender à noite com gestas arrincadas das salas vazias. Essa noite cada um e umha arrimou-se à parede menos suja para durmir, ou ao amigo ou amiga que nom lho impediu. 


Limpar a nave toda nom seria difícil, mas precisava de ordem e concerto e algo haveria que argalhar para a consertar. Forom ao rio recolher vímbios, fabricarom cestos e alguém que os precisava deu-lhes telhas em troca, e mesmo emprestou os aparelhos para colocá-las. Umha algo arteira improvisou umha horta onde dantes estava o pátio, um outro com fame foi apanhar na froita caída que lhe deixaram colher, e outros forom pedir as sobras da feira que se nom venderam. Aos poucos, conseguirom romper a estreita relaçom dos últimos anos entre a choiva e o seu compadre. Tocava logo recortar-lhe as liberdades ao vento, para o que forom precisos moitos mais cestos, cânticos nas praças públicas, e oferecer-se a ajudar aos vizinhos que estavam de colheita.


Com vidros e telhas no seu lugar, só restava pintar as paredes e deixou-se para mais adiante, porque ia custar bastante mais reunir todo o que precisavam. A horta levaria o seu a dar para comer e os trabalhos esporádicos para os vizinhos aumentarom, toda ajuda era bem-vinda e, por pouco que lhes dessem por trabalhar, menos dá umha pedra. Três luas e já a escola quase semelhava a que fora em tempos, e nom só isso. Encherom as aulas vazias com teares feitos com material de refugalho, e abrirom umha oficina de costura a fim de obter prendas e peças de enxoval para trocar entre os habitantes da vila, para além dos seus cestos. Já dispunham de colchons de lá e roupa à vontade, e admitiam pedidos pagos com galinhas ponhedeiras, botes de marmelada, ou leite recém ordenhado. Até que conseguirom umha cabra.


Houvo quem apostou por aumentar o rabanho para especializar-se nos queijos, em vista de que tinham moito êxito entre os fregueses. A oferta de mel, de emplastos de ervas medicinais, e de augardente caseiro chegou co correr dos anos e a adquisiçom de experiência. Quando as autoridades decidirom tomar cartas no assunto, toda a vila opujo-se a que os desalojassem da antiga escola abandonada. Se era propriedade municipal, era de todos os vizinhos e vizinhas. E a ningum deles se lhe ocorria empregá-la em melhor cousa que em continuar dando teito àqueles adolescentes que conheceram desde que nacerom, e agora já eram homes barbudos e mulheres feitas e dereitas, com algumhas crianças a maiores entre eles, nacidas ao calor da comunidade.   


by Eva Loureiro Vilarelhe



21.9.21

Cousas pequenas ('Nacos' 6)











Ela botou em falta a carícia

quando os dedos del voltarom à folha de jornal


Composiçom de lugar:

final de um dia tam duro como qualquer de entre semana

ela trisca numha cenoura corrigindo exames cos pés em cima da mesa

el revisa as notícias passadas sorvendo a infusom junto aos pés descalços dela

demasiado cansado para preparar umha ceia em condiçons

demasiado ocupada para preocupar-se polas queixas do seu estómago 


Situaçom sentimental:

por vezes nem lembram quantos anos levam de convívio

rotinas estabelecidas desde há milénios

éons de tarefas domésticas sobrelevadas a médias

o tempo que se escapa sem deixar tempo para mais nada

onde fica o amor a estas alturas?


Na atraçom mútua

na impossibilidade de nom tocar-se estando perto

na preferência acomodatícia das consabidas posturas

na serenidade que transmite reconhecer a pele do outro


O contato

umha dessas cousas pequenas tam necessárias ainda para a vida



by Eva Loureiro Vilarelhe










9.9.21

Intimidade relativa ('O coelho da Alice' 6)











Desde que Marga entra pola porta, a sala ilumina-se. Nom só a causa do seu carácter alegre e extrovertido —todo o contrário ao da sua companheira de andar—, senom precisamente porque é a luz que guia a existência de Judite. Judite ergue-se moi cedo. Chega ao seu posto na linha de produçom antes de ser dia, mesmo nos meses cálidos em que o sol madruga canda ela. Marga a essas horas dorme a perna solta, mas nem por isso Judite ousa achegar-se a espreitar no seu quarto. Prefere imaginá-la. Como a imagina dando aulas cada tarde no centro de estudos onde malgasta a sua valia. Ainda nom conseguiu convencê-la para que se assegure o futuro opositando, é demasiado preguiçosa para afrontar o temário, e para que ia querer ela incorporar-se ao ensino público se nunca gostou de abrir as pálpebras antes das dez da manhá. Está melhor na academia trabalhando despois do jantar. Até hai vezes em que tem margem para fazer a compra ao sair, e apressura-se coa ideia de preparar ela a ceia.


Ceia coa que pretende agradecer-lhe a Judite que se ocupe da maior parte das tarefas da casa. Esta dispom de mais tempo ao jantar na cantina da fábrica. Mesmo que se bote umha merecida sesta no sofá, é capaz de deixar o piso reluzente num chiscar de olhos. Com dizer que sempre a encontra lendo um dos grossos volumes da sua biblioteca. A música clássica quase imperceptível envolve essa atmosfera de tranquilidade que tanto agrada a Marga. Por moito que poda semelhar que nom, a julgar pola radical mudança que provoca que ela faga acto de presença. O seu telemóvel vomita a todo volume o que marca tendência em Spotify, daí que se veja obrigada a vociferar as últimas novidades a propósito dos seus malogrados estudantes —que jamais superarám esse ingente número de matérias sem apoio extra—, intercalando entre os seus erráticos comentários umha pergunta retórica sobre o que lhe apetece cear, quando em realidade já escolheu de antemao o menu para ambas. 


Ambas saúdam-se com um sorriso. Judite nem responde, é toda olhos para ela. No entanto, fechara-os ao sentir a chave na fechadura. Inspirou profundamente como preparando-se para o que lhe esperava, mas era para apreçar com maior nitidez se cabe o recendo que desprende a sua amada. Porque amor —moito amor— é o que sente por quem só vê nela umha boa amiga, com quem partilhar gastos de aluguer e facturas várias, ademais de com quem —rara vez— desabafar. Porque, a fim de contas, quando é que a vida resulta insofrível para alguém que costuma vê-la de cor de rosa? Rosa tamém é a camisola que leva posta Marga e tanto lhe favorece à sua pele tostada. A sua melena ondulada acaricia o pescoço de Judite, quando lhe planta um casto e sonoro beijo na cara a quem se vê tam surpreendida e afortunada quanto Fred Astaire. Judite tem a sua Rita Hayworth particular. A sua Rita. De feito, Rita é como a chama em segredo, Marga é para todos os demais. Só é Rita para ela. Para quem melhor a conhece e mais a desfruta na intimidade. 


Intimidade relativa, por suposto. Que mais desejaria Judite que poder assistir a umha intimidade completa, mesmo que nom intimasse com ela. Contentaria-se com contemplá-la —como fai sempre—, mas em todo o momento e lugar. Sem quartos separados, sem camas distantes, sem inoportunas prendas interiores. Nua ante ela. A sua deusa completamente espida ao alcance do seu tímido olhar. Consciente de que sonha desperta, regressa ao prato onde bate ovos umha adorável mao amiga que lhe fai a boca auga. Marga continua a falar —nom parou um segundo desde que regressou—, Judite reflexiona sobre o poderio dessa voz que a embriaga, que jamais se ressente apesar das horas a fio que a usa a sua dona. Ela, em silêncio, assente.        


Assente, sem atender em excesso às histórias que lhe está a relatar. Nom lhe interessam as suas relaçons sociais, para quanto mais as suas aventuras amorosas —que elimina do seu pensamento de imediato—, nada alheio a elas duas lhe importa em absoluto. Porque sabe que algum dia desaparecerá da sua vista o único que dá sentido à sua vida. Sabe que Marga é demasiado bonita para ficar soa. Que a sua situaçom atual é tam circunstancial como transitória. Que igual que agora a Marga lhe convém conviver com ela, chegará o momento da despedida. E quanto menos consciente seja Judite de que a data limite se aproxima, tanto melhor. Afastar a dor do esperado final, é o seu objetivo. Assi como desfrutar da felicidade dumha existência em comum que nom é tal. Tal como agora, atenta à inexperta e voluntariosa beleza que se desenvolve com torpeza na estreita cozinha do seu modesto apartamento. A quem lhe vai abrir o apetite umha insulsa tortilha quando se pode saborear a cozinheira comendo-a cos olhos?  






by Eva Loureiro Vilarelhe





19.6.21

Nómade ('Nacos' 5)









Viajar está ao alcance de qualquer

eu mesma de nena viajava moito

(fustigada pola vertigem da consciência)

sem sair do meu próprio quarto

ou olhando pola janela do auto

de caminho à casa eu ia em direçom

contrária

visitava países e lugares estranhos

mundos imaginários tam reais

como a lua que assomava ao meu rostro

e sorria calculando o longe que estaria

eu quieta diante dela e a anos luz dali


Quando estou contigo 

nom preciso de mais nada

mas estás tam pouco comigo

que a minha sede de tudo

converte-se numha chaga purulenta

arrasando por completo o meu ser

daí que leve umha vida nómade

atada a ti percorro o multiverso

sem quarto próprio saio em direçom

contrária

visitando lugares e países velhos

conhecidos meus mundos virtuais

afastados dos imaginários reais

fugindo daqueles que me perseguem

(fingir que som outra nunca foi o meu forte)

o meu espírito inconformista 

só garante que serei nómade de por vida



by Eva Loureiro Vilarelhe





3.6.21

Liberada ('Feridamorte' 15)





Se está escrito nom o sei

só digo que é inútil loitar

contra o nosso próprio destino

para trágico já está o de Edipo


Curiosa por descobrir o meu

continuo valente o caminho

quando é a vida quem se abre passo

através de mim


Prenhe dela

desfruto por fim liberada

de todo o que nom me ata a ti

Grifo protetor do meu equilíbrio


Iminente e imanente 

o porvir nom tem aguarda

segura sempre a minha mao na tua amor

e acompanha-me nesta viagem sem retorno


by Eva Loureiro Vilarelhe






27.5.21

Mochila ('Feridamorte' 14)






Nada se supera

todinho deixa pouso

os meus mil milheiros de fundos de cuncas

pesam um quintal a estas alturas


Levo essa mochila perene às costas

daí que procure fixar a vista à frente

olhar o passado fai doer as cicatrizes

e a última vai demorar o seu em sarar


Se é que um dia cura o meu maltreito coraçom

de passarinho ferido que nom se rende

bate forte e rápido na procura de ninho

onde reinventar o arelado futuro prometedor


by Eva Loureiro Vilarelhe





17.5.21

Ti si que me entendes ('O coelho da Alice' 5)









Espertei notando o agradável calor do seu pequeno corpo enroscado junto às minhas pernas. Havia demasiado tempo que nom durmia tantas horas seguidas e custou-me centrar-me, olhei o relógio e espreguicei-me ainda atontada. Tinha turno de noite e como nom me apura-se ia chegar tarde. Ergueu as orelhas de imediato ao sentir as chaves na porta. Afaguei-lhe a cabeça tentando tranquilizá-la. “Nom vai aparecer por aqui até que me vaia”, sussurrei convencida, espreitando os seus passos pola sala. David tarda bastante em voltar a dirigir-me a palavra despois dumha discussom. Por vezes, mais dumha semana. E isso que el discutir nom discute. Limita-se a levar-me a contrária com condescendência sem elevar o tom nem o mais mínimo. Só eu posta em ridículo —tanto polos seus comentários desdenhosos, como polo meu comportamento—, gritando e gesticulando como umha possessa.


A cadela assistira à minha patética actuaçom essa mesma manhá. Tremia como umha folha sem atrever-se a mover do seu sítio, no canto da cozinha onde tem a cesta e a comida. Alterada como estava, nem reparei em que manchara o piso fazendo as suas necessidades ali mesmo, cousa que nom passou despercebida para el, e aproveitou para botar-me em cara que se me ocorresse meter aquel bicho nojento na casa sem consultar-lho antes. Tamém discutira com David o dia que me tropecei com ela num soportal. Saíra a comprar no súper e de repente caiu umha tromba de auga, procurei refúgio até que escampara, e ali estava aquela bola de pelo enchoupada olhando para mim cos olhos mais tristes que vira na vida. Tentei dar-lhe calor co meu corpo metendo-a baixo o impermeável, e voltei para a casa esquecendo a excusa para fugir do seu lado.


El demorou-se a abrir a porta, a sua inseparável cunca de cacau quente na outra mao. Coas pressas, deixara as chaves e recriminou-me a minha ineptidom na sua gélida olhada. Até que assomou o focinho e el torceu o gesto. Saltou-se a sua norma de punitivo silêncio para reprochar: “Nem filhos, nem mascotes, lembra. Já me chega com ter que coidar de ti.” A cadela nom se assustou ante a sua voz queda, como si notei o seu arrepio quando abriu o meu chuvasqueiro para vê-la melhor. “Nom podia ser mais feio o bicho…”, resmungou dando-nos as costas sem mais. Soubem nesse momento que ela podia ver em David o que o resto nom via.


As minhas amigas sempre me diziam que me queixava de vício. Que já gostariam elas de que as suas parelhas fossem tam conversadoras e compreensivas como David, a quem consideram tam doce como o cacau que bebe. Cheguei a pensar que era cousa minha. Que eu era a única culpável da decepçom tatuada no seu rosto por ser como som, um desastre para tantas cousas que el domina à perfeiçom. Foi ela quem me demostrou que eram os demais os que estavam cegados polo brilho do seu intelecto e dos seus refinados modais. A veterinária constatou o que nos temíamos: estava desnutrida e fora maltratada com sanha. Com qualquer ruído imprevisto fugia de imediato, tremendo e fazendo-se umha bola como o dia que a encontrei, nesse caso tremelicando por mor do frio. O seu ajudante colheu-na com mimo no colo, querendo saber qual era o seu nome. 

—Parda —respondim sem pensar, gostava dessa cor indefinível da sua agreste mata de pelo, e até semelhava um pardal do pequeninha que é.           

—Moi bem, Parda, agora vou dar-te um banho moi especial para desparasitar-te, e que che parece se despois te peiteio e ponho-te mais bonita do que és? —perguntou-lhe com todo o carinho que botara em falta durante a sua breve e fatídica existência.

—É um cachorro ainda, e suponho que nunca a vacinarom… assi que iniciaremos o protocolo básico desde zero, se estás de acordo —a veterinária deu-me a seguir as indicaçons pertinentes para tratar de que recobrasse a saúde o antes possível. 

Parda evoluiu rápido e passava o pouco tempo que paro na casa colada a mim. David comentou que agradecia que desaparecesse do mapa quando eu faltava, demostrando com isso a sua inteligência canina. E que eu nom estava errada. 


Abrim o armário na procura do meu uniforme de reposto, já nom tinha margem para mudar-me ao chegar. Ela aproveitou que deixara a porta aberta para meter-se, escondendo-se aginha dentro da minha mochila da piscina. Assi que era esse o seu refúgio. Eu levava tanto sem fazer desporto como sem durmir de dia ou à noite. A minha médica receitou-me as típicas pastilhas que preferim nom usar, porque me advertiu que nom poderia deixá-las de golpe. Verificar no espelho as olheiras e o fraca que estou, obrigou-me a dar-lhes umha oportunidade. A discussom desta manhá deixara-me tam exausta como vazia por dentro e, com semelhante ánimo, nom ia poder descansar. Desesperada dando-lhe voltas sempre ao mesmo. Por que? Que foi o que figem desta vez? Nom o entendia… Jamais o entenderei. Parda assomou o focinho a modo de despedida. Os seus olhos estavam imensamente tristes, mas nom igual que antes. Nom por ela ao menos. Agora que me tinha a mim, parecia compadecer-se do meu sofrimento. 

 

“Ti si que me entendes”, dixem-lhe ajoelhando-me para afagar a sua cabecinha meio escondida. Eu tamém a tinha a ela. Nesse momento dei-me conta do estúpida que estava a ser. A sesta auto-imposta despejara-me por fim o entendimento. Colhim um par de mudas e metim-nas ao seu lado, ela mexeu a cola esperançada. Fum buscar a escova dos dentes e o livro da mesinha de cabeceira. Marquei o seu número maldizendo as horas, deita-se cedo e igual era demasiado tarde para avisá-la. 

—Importas-te se fico aí um par de dias? 

—E o resto da vida, bem o sabes! —afirmou alegre— Ai, filha, já me tardava que o deixasses…

Por que será que me confesso coas amigas e sempre esqueço a quem melhor me conhece?

—E nom poderás vir polo hospital antes de que comece o meu turno? Tenho a Parda comigo e… vaia, agora que o penso, igual é um problema para Mona! 

A gata siamesa da minha mai —que sorri como a dama do famoso quadro de Da Vinci— é bastante arisca cos desconhecidos. A David sempre lhe bufa… ou será porque ela tamém…? Está visto que a única que nom vê os sinais som eu. 

—Nom te apures, Mona vai velha e há de agradecer a companhia tanto coma mim!

O seu tom cantareiro agoirava o que nesse intre dei por seguro: havíamos de ser mais felizes as quatro juntas.   



by Eva Loureiro Vilarelhe