17.5.20

A minha íntima desconhecida (‘O coelho da Alice’ 4)






    Entrei naquel lúgubre bar porque morria de sede. Caminhara sem importar-me em que direçom durante mais tempo do que era consciente, e agora nom sabia nem em que bairro estava. Só sentia que aquel lume estava a devorar-me por dentro. Na rua o calor abafava, e era evidente que a meia dúzia de homes de diferentes idades —desperdigados polas diminutas mesas, rodeadas de cadeiras sem conjuntar, que ateigavam o angosto espaço— estavam ali a fugir do sol. A minha sede nom vinha derivada de precisar sombra, mais bem se tratava de um constante e indómito mal-estar. Ardente e acedo como nunca antes o experimentara. O trauma fendera-me a alma pola metade e um tremendo escozor apoderou-se da minha garganta. Como o meu coraçom já nom podia partir-se em mais pedaços, deveu ser aquel trasunto de sede insaciável polo que optou o meu corpo, em vingança. 

    Sentei ao carom dela por inércia. Por inércia nom, senom porque era a única mulher no local, soa ali no fundo. Em qualquer outro lugar teria escolhido um sítio perto da janela o bastante afastado dos demais para centrar-me nos meus pensamentos sem mais, oteando vagamente a imprevisível vista da rua. Mas nom contava com que nom houvesse possibilidade de isolamento. Por isso preferim a proximidade doutra mulher, antes da de qualquer outro dos presentes. Quase nom reparei nas suas facianas ao passar de corrido junto a eles. Limitei-me a espreitar as posturas, os gestos, o tom de voz com que se dirigiam ao seu acompanhante ou acompanhantes, ou ao empregado do bar que os atendia solícito. Ansiando alcançar quanto antes o lugar onde se encontrava o meu oásis persoal.

    Deixei a carteira e o telemóvel enriba do balcom junto a ela, confiante de que estariam a bom recaudo, e figem ademam ao rapaz de que ia ao banho. Enquanto lavava as mans pensei que fora a sua expressom serena a que me levou a apresurar-me onda ela. Isso, ou a espécie de saúdo com infinitesimal alçar de sobrancelhas que me dirigiu ao ver-me,  ocupada como estava dando boa conta da sua consumiçom. O caso é que acudim ao seu encontro como chamada por umha necessidade de paz, certa de que com ela a colmaria, sabedora de que estamos unidas por essa invisível e sempiterna irmandade feminina inquebrantável. Ou isso foi o que me pareceu reconhecer na sua sutil bem-vinda. Pedim o mesmo que estava tomando, mais umha cola fria com gelo para mim. Entreguei-lhe a segunda ronda à minha costa e franziu a testa olhando-me interrogante. “Em agradecimento”, declarei esforçando-me por sorrir com maior convicçom da que me permitia o meu deplorável estado de ánimo. Pestanejou confusa e aclarei a voz antes de admitir: “Polo que vai vir.”   

    E aconteceu. Ao nom encontrar qualquer tipo de resistência pola sua parte —senom mais bem todo o contrário—, posto que esboçou um sorriso compasivo que constituiu o melhor estímulo para lançar-me a desabafar, fazendo-a partícipe praticamente de toda a história da minha vida. Daquela maneira, bem é certo, porque nom seguim umha linha moi cronológica que digamos… Comecei polo sucedido essa mesma tórrida manhá de desacostumadas altas temperaturas para a ainda mediada primavera. E continuei de forma inconexa relatando os terríveis episódios que marcarom a minha vida desde que tenho uso de razom. Os seus olhos entrecerrados, mais os dedos inquietos no queixo, indicarom-me que —por momentos— nom devim ser moi coerente. No entanto, nom me interrompeu, permaneceu em silêncio a escoitar o que tinha que confesar, coa convicçom de que me entendia à perfeiçom gravada no seu rostro hirsuto. 

    As suas maos —maltratadas por algum tipo de rude e reiterada tarefa— nom escondiam a sua idade, devia ter quinze ou vinte mais do que eu; sem embargo, nom encontrei nela ningum atisbo de mai comprensiva e protectora, senom de companheira, de amiga leal. Dessas que paga a pena mimar sempre, porque estará aí sempre que a precisares. E estivo. Comigo o tempo todo aquel em que tanto a necessitei, naquel trance de inusitada franqueza e autêntica fraqueza pola minha parte, em que tivem que recorrer a umha perfeita desconhecida —íntima minha já— para ficar tranquila. Descansada até, poderia dizer-se, tras relatar a última vivência proferida num susurro quase ao rente do ouvido daquela piedosa mulher. 

    Pese a estar concentrada no meu discurso, notava a olhada interessada do empregado que se ocupava dos escasos clientes. O seu esforço por tentar captar algum retalho da longa conversa —ou mais bem monólogo— que ocupava às duas únicas representantes do género feminino com que se tinham que conformar. Ambas carentes do atractivo habitual que fai voltar a vista a determinados especímenes do sexo masculino. Só foi quando o intrínseco silêncio que me acompanha se apoderou de novo de mim, que reparei na hora que era, e —sobressaltada— paguei disposta a sair dali a toda pressa. 

    Ela nem se imutou pola minha repentina mudança de velocidade. Tinha falado com vagar de mais, talvez influenciada pola calma que me transmitia o seu olhar, mas era demasiado tarde e havia tempo que deveria ter marchado. Por instinto de conservaçom, perguntei ao rapaz polo caminho mais rápido para a estaçom. E, nesse intre, reconhecim para mim mesma que o que mais necessitava era encontrar-me, mais do que encontrar o caminho de volta à casa. Agradecim encarecidamente a paciência da minha ouvinte, ela simplesmente acenou coa cabeça a modo de despedida. Ao encarar o ar tépido da iminente noite, reparei em que nom ficava vestígio algum da minha desassossegadora sede. E lamentei saber a ciência certa que nunca mais veria à responsável de que assi fosse. 

by Eva Loureiro Vilarelhe