29.6.22

Varada ('in.timo' 4)







Dorna encalhada na areia

que nem navega nem pola terra

avançar pode à baixa-mar

olhando o céu que impávido assiste

à minha interminável agonia

o meu corpo em descomposiçom

por falta de uso apodrece

sinto a comichom impertérrita 

moscas larvas pássaros pulgas

e demais fauna marinha

dando boa conta das minhas vísceras

o cheiro afugenta ao resto de seres

vivos ou mortos cos que me relaciono

fico soa

esquecida e fora deste mundo

negando-me a sair do meu

prefiro continuar como estou

extinta em vida

varada em ti


by Eva Loureiro Vilarelhe





15.6.22

Alegria ('in.timo' 3)






Um raio de sol

no vao da porta

A brisa marinha

enleando a caluga

Um rastro de folhas secas

crepitando incertas

A banana do teu sorriso

no começo dum novo dia

Agora que mo perguntas

semelha que é alegria

Manhá igual che diria

que me provoca tristura

O raio do sol

espreitando da porta

A minha caluga mesta

de lacrimal salitre

O vento arrastrando

incerto tanta folhagem

O teu sorriso congelado

após a noite de insónia


by Eva Loureiro Vilarelhe





1.6.22

Olhos que nom vem ('Cantos contos' 5)







A avoa ficou cega por mor do glaucoma. Ela explica-o dum jeito mais prosaico: “Apagarom-se-me todas as lâmpadas, minha filha, e som tam antigas que já nom se fabricam…” Papai viu-se obrigado a ingressá-la numha residência, aterrado ante a ideia de que ficasse soa mentres el ia trabalhar. A sua mai ocupava-se da casa e preparava o jantar ou a ceia —em funçom do seu turno na fábrica— e, por moito que ela insistiu em que o seguiria fazendo às apalpadelas, nom houvo maneira. O hipocondríaco do seu único filho nom suportaria que lhe acontecer qualquer cousa estando ausente. 


Tivo a lucidez de resgatá-la justo antes da hecatombe. Cheirou-no quando começarom correr rumores sobre o que estava a acontecer em Wuhan, e que nom seria moi disparatado que aquela epidemia se estendesse como a pólvora. Os cépticos citavam o bluff da gripe aviária para escarnecer do seu instinto previsor; no entanto, meu pai foi dos que fijo aprovisionamento de medicinas e alimentos mesmo antes de que saltassem os primeiros alarmes. E trouxo à avoa de volta a casa aginha, em quanto tivo o búnquer preparado para o confinamento.


Nom pudem unir-me a eles até à instauraçom da nova normalidade trás a desescalada, em vista de que a minha comunidade de residência nom levava o ritmo parelho à nossa. Por prescriçom facultativa, passei as tardes a ler-lhe e fazer-lhe companha à avoa. Umha vez superada a saudade polo largo tempo separados, era a escusa perfeita para que o meu pai saísse passear tranquilo e mesmo ousasse tomar-se umha cerveja nas esplanadas reabertas cos seus ex-companheiros de trabalho. A sua empresa nom levou a cabo ERTEs, ainda que si acelerou a reforma daqueles empregados que estavam a pique de cumprir coa idade mínima requerida. Papai alegrou-se de que lhe tocasse a el. Nom polo cansaço acumulado despois de mais de quarenta anos cotizados, senom porque assi nom teria que contratar ninguém para ocupar-se da sua mai. 


Via-se que botava em falta as rotinas da sua época em ativo, ainda que o encerro obrigatório ajudou-no a sobrelevar o reajuste à sua imprevista realidade. Para mim, supujo todo o contrário. Perder à Leire nesses momentos foi devastador. Daí que o meu amigo Jon —psiquiatra de profissom— me aconselhasse estreitar os laços familiares, debilitados pola minha situaçom laboral, que mal me permitira regressar à nossa cidade de origem em datas sinaladas. Tam só polo Natal —e algumha que outra escapada no veram— era quando papai mais a avoa me tinham diante ao vivo. Até que o inesperado vírus COVID-19 trastocou todos os nossos planos, e arrebatou-me o amor da minha vida.   


Três meses bastarom-me para saber que era ela. Bem, tecnicamente dous, porque o último estivemos separadas. Nunca entendera o das videoconferências até entom. Nom me queixava por que o telefone me espertasse às tantas, moi pelo contrário, agradecia-lho imenso —e com conhecimento de causa: despois nom colheria o sono de novo e esse dia estaria derrotada diante do computador—. Leire telefonava sempre que podia, durante os seus escassos e intempestivos momentos de relax. Eufemismo para os efémeros cinco minutos que se permitia o luxo de parar a máquina para recuperar folgos. Nem sequer entom se desprendia da equipa de proteçom. 


É um modo de dizer, tocou-lhe lidiar coa primeira onda de casos e tanto ela como o resto do persoal do hospital virom-se abocados a responder à beira do colapso, sem estar devidamente preparados ante a falta de material de todo tipo. Trás dumha viseira de plástico improvisada —usando as capas dum memorandum coladas a um diadema— e o par de máscaras —que tempo despois soubemos eram absolutamente inefectivas e provocarom que se contagiassen centos de sanitários de igual modo que ela—, era testemunha de como a sua olhada penetrante se desvivia por nom perder nem um detalhe das minhas facçons.

 

Apenas comentava nada de si mesma, só me pedia que falasse. “Conta-me qualquer cousa, o que for…”, isto vinha justo a seguir do “Olá, peque, estranho-te tanto!” Era o único que lhe dava tempo a dizer antes de que se lhe desbordassem os olhos de lágrimas. Eu tragava saliva e esforçava-me por fazê-la rir cos disparates que recopilava a diário. Consciente de que Leire é fria como umha pedra de gelo no quirófano, sabia que nom chorava por mera pieguice, como fazia eu mesma vendo as notícias da noite. Senom de raiva e impotência, ante o ingente número de mortos que se viam incapazes de refrear. “Nom saias para nada!”, era a sua maneira de despedir-se, feliz de que me queimasse as pestanas de tanto telecomutar. Eu quadrava-me como se estivesse ante o sargento mais severo e ela dava o sinal de ‘descanse’ cum par de dedos na têmpora. 


Ainda sonho com esse gesto. Nom podia ver-lhe a boca mas, pola posiçom das suas pálpebras, reconhecia que estava a sorrir. E a mim derretera-me a primeira vez que estendeu na minha frente o seu maravilhoso sorriso. Jamais voltarei vê-la sorrir. Jamais voltarei vê-la. Jamais voltarei sorrir. O meu pai está demasiado afetado para notá-lo, e o único bom de que a avoa tenha ficado cega é que agora nom se dá conta de que já nom som quem de sorrir. Olhos que nom vem… 



by Eva Loureiro Vilarelhe