21.12.22

Noite especial ('Cantos contos' 6)









Dedicado a toda essa gente de Canido 

que fai do bairro um lugar tam acolhedor



O dia amenceu grisalho, umha descortês ventolada desarrumou o recente peiteado de dona Rosa. Mal-humorada e arfando polo esforço de subir a encosta, deu-lhe as queixas à Maia mentres distribuía a compra entre o frigorífico e os armários da cozinha. A gatinha mianhou compreensiva arregalando os seus olhos amarelos, a senhora franziu os dela acarinhando-lhe o lombo agradecida. 

—Ainda bem que te tenho, linda, de nom ser por ti, estaria sempre tam soa… —comentou deitando um pouco de leite na cunca da Maia co galho de premiar a sua lealdade. Ao endereçar a trompicons as costas reparou no calendário: faltavam quinze dias para Noite-boa. Foi em direçom ao banho cismando, no espelho tratou de recompor o cabelo emaranhado. Dinheiro desperdiçado na cabeleiraria… Decidiu que este ano ia ser diferente e foi procurar o que precisava nas gavetas do seu escritório. Duvidou em usar o plural, perguntou o seu parecer, a gata deitada aos seus pés ergueu a testa curiosa. Elas eram duas, concluiu. Copiou o mesmo texto num bom feixe de folhas coa sua bonita caligrafia de feitio antigo. Coa mao a doer —após tanto escrever— preparou o jantar cantarolando. Maia lambia os bigodes tam contenta quanto a sua dona, ainda que por diversos motivos: o guiso de peixe enchia de gostosos vapores a cozinha e havia de saber-lhe a glória…

Essa mesma tarde dona Rosa distribuiu os seus papéis polo bairro, Canido tinha sona de alegre e ela só pretendia beneficiar-se dessa ledícia por umha noite. Umha noite especial que dantes passava acompanhada por familiares. Ao correr dos anos foram desaparecendo aos poucos, uns deixando o mundo dos vivos, outros indo viver longe, e à sua idade já nom estava para ir visitá-los como tinha feito antes de partir a perna. Agora andava mais de vagar e sentia-se demasiado cansada para viajar. Estranhava a casa cheia de gente, umha casa grande de mais para ela soa. Sem os seus pais, sem o home, sem os seus irmaos, sem sobrinhos a quem mimar. Os sobrinhos já tinham filhos grandes e só ela restava dos mais velhos da família. Coas suas amigas sucedera outro tanto, ela das mais novas e a única fora do asilo. Ficara soa, essa era a verdade. Ainda bem que tenho à Maia, repetiu para si.


Aroa acudiu à lanvandaria como cada semana. Encheu a lavadora de moedas e entretivo-se navegando polas redes até que finou a bateria do telemóvel. Tocava esperar ainda pola secadora e a rapaza nom sabia moi bem com que enredar. Começou ler diversos cartazes e anúncios —ofertas de serviço doméstico ou operários de toda a espécie, as mais das vezes—, até que reparou num escrito a lápis com trémulas letras que logrou concentrar o seu irrequieto interesse. “Se estás soa —leu ela— vem passar connosco a Noiteboa”, citava-se a toda a gente para as oito horas da tarde num domicílio particular… essa rua tinha que estar no bairro, sem dúvida, de tanto que lhe soava o nome. No entanto, nom tinha a absoluta certeza e a repentina morte do telefone nom lhe resolveu a dúvida no intre —paciência, Aroa, diria a sua mai de estar canda ela—, mas a sua mai estava a centos de quilómetros e, como nessas datas tinha que trabalhar, nom se veriam até inícios de janeiro. Co seu pai nom lhe apetecia celebrar nada, anojada ao vê-lo tam acaramelado coa sua última parelha —apostaria o que fosse a que ela era mais velha—, e aproveitaria para ficar a estudar, o primeiro quadrimestre nom estava a correr tam bem como deveria. E para Aroa era fundamental conseguir boas notas, nom podia permitir-se o luxo de perder a sua ansiada bolsa. 

Memorizou o endereço e foi deixar a roupa limpa no seu quarto, nom tinha moito trato co resto de colegas do apartamento de aluguer e todas voltavam aos seus lares polo Natal. A rua em questom ficava por trás da sua, de feito, tinha passado por diante daquela casa com jardim nas traseiras um lote de vezes de caminho à faculdade. Nom era umha senhora de cabelo moi branco quem vivia nela? Si, essa que tinha um certo ar a avoa de conto. Aroa sorriu para si, a sua avoa materna morrera havia dous anos e era igual de garrida, sempre bem vestida e sempre amável com todo o mundo. Já tinha com quem passar as festas, pensou, tentaria preparar para levar o mesmo doce que lhe ensinara a fazer a avoa e tanto louvava a sua mai.    


Pedro encravou a maos nos petos do casaco, o vento vinha mais frio à tardinha e precisava com urgência de encontrar lugar para passar a noite. Os cartons molhados pola choiva da véspera já nom prestavam e nom dera apanhado outros. Arrepanhou algo que levar à boca nos contentores do lixo, mas nada de caixas nem jornais, devia ter passado o camiom do reciclado. A luz da lavandaria deu-lhe umha ideia —duvidou um instante constatando que nom havia ninguém—, podia aproveitar para aquecer-se um pouco ali dentro. Nem tempo lhe deu a atemperar o corpo, umha parelha carregando com um lote de roupa abriu a porta convidando consigo um remoinho de ar gélido. Pedro apressurou-se a sair liscando —consciente de que a sua fedorenta presença nunca era bem acolhida—, arrincando ao seu passo sem querer umha folha colada no quadro de avisos. A parelha olhava-o mal-encarada, apesar de a folha mais el ter acabado na rua de contado.

Recolheu-na do chao, a falta de nada melhor, dava para meter dentro das calças furadas. Antes de o fazer, reparou no que estava escrito nela.  “Se estás só —leu el— vem passar connosco a Noite-boa”. Era boa!, quem ia querer passar a noite canda el? Afundou o papel entre as pernas agradecendo o amparo de imediato, o vento colava-se por todos os buracos. Para Noite-boa faltava… quanto? Duas semanas?, aventurou. Daqui alá bem poderia arranjar roupa mais decente… lavaria-se bem na fonte antes de a trocar… e mesmo trataria de cortar o cabelo e a barba, nom moito, que co inverno às portas até o pelo do corpo abriga… Que disparate! E logo, ia apresentar-se assi de maos vazias? Centra-te nesta noite, dixo-se anojado consigo mesmo por tê-lo considerado sequera, que ainda nom tés onde passá-la e já está aqui. 


 Mabel espertou cedo à manhá seguinte. O vento acalmara um bocadinho e o sol brilhava já a essa hora, mas um frio de morrer estava à sua espera na rua. Esfregou as maos embutidas nas luvas e desatou a correr, primeiro de vagar, aginha acompassando o rápido latejar do seu coraçom. Os nove quilómetros passarom num suspiro, o que lhe levou chegar à Malata indo polo passeio de Canido, seguir por diante do Porto de Corujeiras e percorrer o muro do Arsenal até à porta dos Estaleiros de Esteiro, e voltar. Parou comprar uns croassans para o almorço, a padaria abriu para ela e a empregada saudou-na admirada polo seu esforço. Porque tinha que trabalhar, do contrario nom madrugaria tanto… e moito menos para correr! Mabel apressurou de novo o passo, um arrepio ao notar o suor arrefecido nas costas, ansiava chegar à casa e entrar em calor baixo a auga quente. Demorara-se em excesso comprando o pam, por culpa dum cartaz que lhe saltou nas vistas. 

“Se estás soa —leu ela— vem passar connosco a Noite-boa” Nom estaria soa. Os cativos mais ela botariam em falta ao Carlos, isso si, que anda embarcado até à próxima primavera. O primeiro Natal sem seu pai. Ela sabia o que era isso, o dela morrera havia anos e ainda nom estava afeita a que faltasse. Coa mai enferma, tocava celebrá-lo na casa da sua irmá maior, a única que tinha e coa que nunca se dera moi bem. Nom lhe apetecia nada. Carlos era o seu escudo, suportava as brincadeiras do cunhado, nom rifava com ninguém e mantinha o sorriso posto durante toda a velada. Ela ia discutir coa Carminha antes sequera de sentar a cear, estaria amuada na mesa, e os miúdos nom iam desfrutar como deveriam da sua noite especial. Em fim, era o que havia… Isidoro si que merecia nom passar a Noite-boa só. Parou na sua porta ao subir as escadas de duas em duas segurando bem o embrulho baixo o braço. O velhote demorou a abrir. Sem dúvida estava a ler —tinha os óculos pendurados do pescoço— e olhou para ela sorrindo sem surpresa. 

—Outra vez às carreiras, nom si?

—A ver, —deu-lhe um par de cruassans envoltos em papel que pedira à parte— que o exercício intelectual tamém precisa de energia, aposto a que só tés no corpo o café bebido. E já que estamos, vou passar-che um convite… —envia-lhe nesse instante a foto do cartaz por WhattsApp.

—Ai, Mabelinha, bem sabes que de manhá nom som persoa sem cafeína… —esguio e alto quanto é, pouco come, Mabel já o conhece— que me envias o quê?

Isidoro coloca os óculos na ponta do nariz e move os seus longos dedos polo telemóvel, moi amodinho, até darem coa fotografia. “Se estás só —leu el— vem passar connosco a Noiteboa”

—Um convite para ires a casa doutros, em vista de que coa minha família nom queres nada…

—Boh! E logo que pinto eu na casa de ninguém? Nem na da tua irmá, nem naqueloutra…

—Acaba por ser umha festa do bairro, digo-cho eu, ho!

—Que festa é essa? —umha cabecinha cativa assomou polo oco das escadas.

—Tira para casa, Brais, que vás colher frio em pijama.

—Onde é a festa? —insistiu o pequeno baixando todo o rápido que lho permitiam os chinelos— Convidas ao Doro, e nós nom podemos ir, ou quê?

—Ai, eu só vou se te levo comigo, rapaz, nom o duvides…

—Brais! Nom podes sair assi se eu nom che deixo! Quando nom está mamá som eu a que mando! —a adolescente enfadada descia as escadas tamém em pijama.

—Bem cho sei, que nom será por vezes que mo repetes… —o espilido neno pujo os olhos em branco.

—Bulide para a casa agora mesmo! —rosmou a mai, aquilo estava a piques de converter-se numha reuniom vizinhal.

—Antes falamos da festa! Eu vou co Doro, se vós as duas nom queredes vir canda nós, ide à casa da tia… —o cativo já estava ao tanto de todo despois de consultar o telefone do vizinho, quem tem conta deles sempre que a mai sai atrasada do trabalho— Ainda que eu vos garanto que nom o ides passar tam bem sem nós os dous… —o velhote acariciou-lhe o cabelo despeiteado botando-se a rir.

—Deixa que seja a tua mai quem o decida, rapaz! Duvido que aos teus tios lhes chiste moito que nom vaiades essa noite, e tés que enredar cos teus primos antes que com um velho coma mim, digo eu…

—Os primos já som maiores e só lhe fam caso à Antela, eu como se nom existisse, aliás a eles já os imos ver tamém no jantar de Natal… e contigo passo-o tam bem como co meu pai, Doro, estou desejando que volte para ensinar-lhe o bem que jogo agora às cartas! —um chisco de fachenda assomava aos seus risonhos olhos infantis.


Os dias foram passando e a notícia daquela inusual reuniom estendeu-se de boca em boca polo bairro adiante, mas ninguém falou diretamente coa anfitrioa. O dia de Noite-boa dona Rosa foi ao mercado recolher os últimos encargos. Um tanto nervosa, duvidara sobre as quantidades, e se nom lhe chegava a comida? E se nom se animavam a vir e sobrava-lhe demasiada? Tratou de ocupar a cabeça no prato principal. Ia preparar o típico bacalhau com couve-flor, ovos duros, e a saborosa alhada que lhe dá o seu toque característico. Calculou para umha vintena de persoas, como nos bons tempos com todos os da casa juntos. Pareceu-lhe ver um home rondando polo seu jardim quando voltava das compras. Nom lhe deu maior importância, se calhar andava comprovando se aquel era o lugar de encontro. Já tinha visto nas duas últimas semanas a mais de um achegar-se por diante ou por trás da sua casa. 

Aquilo enchia-a de satisfaçom, a gente estava ao tanto, com certeza. Nom é que lho comentassem, ainda que notava que as conversas se interrompiam ao achegar-se ela. Olhavam-na sem dizer nada —só saudavam se se conheciam de algo mais que de vista—, e continuavam cochichando nada mais afastar-se ela. Por moito que estivesse aterrada por se nom aparecia nem umha alma, já pagara a pena. Estava a desfrutar dos preparativos como havia moito que nom o fazia. Colocara a árvore, um lote de adornos —pola sala de jantar principalmente—, tinha turrom e vários doces preparados —era consciente de que igual vinha com outra sobremesa quem se sentisse na obriga—, e até comprara cava. Melhor nom pensar por enquanto o que é que ia fazer com tanta cousa se a festa resultava um fracasso… polo de agora só tinha motivos para cantarolar mentres preparava a ceia, e pôr-se cada vez mais nervosa à medida que se aproximava a hora marcada.


Aroa foi a primeira a chegar, bastante antes do previsto. Queria ajudar co trabalho da cozinha e isso mesmo foi o que lhe dixo a dona Rosa, arregaçando as mangas nada mais tirar o cachecol mais o agasalho. Estava feliz, dona Rosa tinha mais pinta de avoa de perto. Co seu sorriso de alívio por toda bem-vinda, na sua carinha enrugada de pel de pêssego. Um amor! Tal como a imaginava. A Maia enroscou-se nas suas pernas e entendeu o plural do convite. A velha vivia soa coa sua gata e estava farta de passar as festas sem barulho na casa, explicou feliz de que alguém respondera ao seu desesperado apelo. Tinha umha casa grande e preciosa, ideal para a encher de gente. E Aroa desfrutou tanto ali como de cativa, quando ajudava à sua própria avoa a preparar a ceia para toda a família. Só que desta vez a família seria algo peculiar.

Umha enteira, de início pensou Aroa quando foi abrir, bateu à porta pouco despois. Isidoro —Doro, em confiança—, só ia vir se acompanhado da sua vizinha Mabel, e dos filhos desta, Antela —umha rapaza de treze anos, que olhava em volta um tanto desconfiada, até que entrou naquela ampla sala e viu a árvore e as luzes e a mesa deliciosamente posta— e Brais —um pequeno de sete, cujos olhos transparentavam a emoçom que sentia ante todas as novidades—. 

Nom forom os únicos, havia mais gente atrás deles à espera de entrar. Mais vizinhos e vizinhas de Canido, que chegavam sós, ou soas, ou aos pares, ou coa família, porque nom queriam deixar soas nem a dona Rosa, nem à Maia. Trouxerom comida: petiscos, pratos principais, sobremesas. Bebida: garrafas de vinho, de cava, ou de champanha. Mesmo cadeiras, por se nom houvesse suficientes —a Roberto ocorreu-se-lhe tomar emprestadas as do Centro Cívico—, e tampouco faltarom instrumentos musicais. Como é de supor, a rádio local fijo-se eco do acontecimento: César mais Pepa retransmitírom em direto —a todo filispim— boa parte das panjolinhas que se entoárom até bem passada a meia-noite, moitas delas interpretadas polas ressabidas vozes de Muinheiras e Muinheiros do Vento… 

E que foi do Pedro? Aroa foi quem o pescou espreitando entre as roseiras do jardim —sem ousar entrar—. Levou-no direto ao banho do andar de arriba por orde da anfitrioa. Umha vez limpo e perfumado ao seu gosto —esmerou-se co barbeado enquanto Aroa recortava aqui e alá as suas guedelhas—, tinha preparadas prendas do finado marido para mudar-se. Sentou ao lado de dona Rosa, quem lhe fijo prometer que ficaria essa noite a durmir —e todas as que precisasse a seguir—, que ela andava à procura de alguém para reparar a casa, e havia de pagar-lhe um jornal ao noutrora alvanel e agora desempregado. Canido —para além de ter sona por ser alegre— seica é um bairro bem solidário.



by Eva Loureiro Vilarelhe

14.12.22

Presente










para quem me falta



Neste Natal nom quero nengum presente

nem sequer polo meu aniversário

conformo-me com cumprir um único desejo

o de conservar intacta a memória

para lembrar a quem mais boto em falta


Neste Natal reviverei boa parte do passado

hei encher de lembranças o meu bolo de anos

procurando avivar assi a memória

de quem quero tanto e continua estando

sempre presente por estar ausente



by Eva Loureiro Vilarelhe





21.11.22

Ainda ('in.timo' 11)





Um inocente gesto típico de ti

o inconfundível som da tua voz

o rastro do teu olor no corredor

persegue-me durante um bom anaco

trás cruzar-nos só um instante

qualquer tontaria prende em mim

umha lene carícia tua ao acaso

e o baixo ventre ressente-se

Abano a testa incrédula

como assi?

Ainda?

Ainda —rendo-me às evidências—

ainda detentas esse poder

ainda me mantés enfeitiçada

ainda me chegas ao mais fundo

ainda atinges o que mais ninguém

ainda tremo inocente nua ante ti



by Eva Loureiro Vilarelhe




11.11.22

Açulado ('Fogos de artifício' 1)








Azul vejo azul

umha favorecedora pátina azulada

recobre este onírico mundo submarino

borbulhante gargalhada 

ao reconhecer tal inverosimilhança

demoro em dar por que se pode respirar

—coa boca cheia e todo—

o que me leva constatar que está a sugar

um belo pau com fruiçom aparente

quem recebe por trás com gosto anal

—nunca som eu a que protagoniza a encenaçom

mesmo que me identifique coa fantasiosa

protagonista cujas aventuras me incitam

a masturbar-me tam excitada quanto ela—

e a sua colega acaricia os seios de ambas

ofegante é a verdadeira mestra de cerimónias 

—se houver algo de verdade no conto matizo

gosto de ser consciente mesmo no subaquático—

que demostra a sua mestria introduzindo dous dedos

de inofensivas unhas polidas na vagina da sua amiga

—amante e bem cara corrijo-me de novo

em vista dos esforços que fai por comprazê-la—

gozando do prazer que generosa outorga 

perseguindo um bonito de ver e alheio êxtase

iminente a julgar polas respiraçons entrecortadas

do trio que segue as indicaçons da sua batuta

—fálica observância apontaria um invejoso freudiano

eu garanto que nom precisamos de pénis para presumir de falo—

toca allegro ma non troppo e os acordes mudam as tornas

retira os dedos para que o membro rijo a preencha

dura pouco a dupla penetraçom o que vem de entrar vem-se

de imediato e a espectadora desejaria ser ela a emprenhá-la

o sémen nom flutua tal como fai a minha frondosa cabeleira

espumado esperma escorrega polas coxas ainda abertas  

ao retirar-se flácida e abençoada a primeira verga

a segunda reclama o espaço desabitado para si

assi em quadrúpede avanço até os lábios húmidos dela

ávida língua em pá para o clítoris em cunha para dentro

invejo os beijos na boca que lhe dá o soldado ferido de morte  

noto-a a ponto de correr-se os estertores nas costas afiançados

apressuro-me a unir-me a eles ela sem calar nem baixo da auga

o seu gozo soa a música celestial aos meus ouvidos

e sinto por fim o ansiado e açulado orgasmo azulado 

azul vejo azul




by Eva Loureiro Vilarelhe



 

31.10.22

Chega ('in.timo' 10)









Chega umha idade

en que o sexo sem carinho nom basta

—acaso algumha vez prestou?—

e já resulta impossível dissimular

tam temida e franca decadência


Chega umha idade

em que preferes tapar a descobrir

—acaso algumha vez exibiste?—

e esfregar a fragilidade do teu ego

contra um corpo igual de mole


Chega umha idade

em que engoles o amor próprio

—acaso algumha vez pensaste em ti?—

e decides amar sem ambages

a quem amas desde sempre


Chega umha idade

em que sem deixar de julgar-te

—acaso algumha vez dissentes de ti?—

optas por distribuir felicidade

ao passo que te fás mais feliz


Chega umha idade 

em que já nom recolhes tempestades

—acaso algumha vez sementaras?—

e o vento amaina ao teu carom

postulando em amante



by Eva Loureiro Vilarelhe





13.10.22

De velha ('in.timo' 9)










Como será a minha vida

pergunto-me de velha

ainda mais curta de vista

se calhar quase cega


Talvez tanto amor furibundo

que me consome e dá-me vida

já nom justifique no fundo

essa magra existência minha


Da memória que me restar

o sexo caia no esquecimento

sem fame de nada ora olhar

o solpor que precede o empíreo


Enxuta e satisfeita vida no fim

necessidades baixo mínimos

conhecidos os ansiados confins

descanse em paz tal os cínicos



by Eva Loureiro Vilarelhe




21.9.22

Derrotada ('in.timo' 8)







Hai golpes fatais

vindos de frases do mais simples

simples frases formadas por palavras

que combinadas de certo jeito

pronunciadas com determinada intensidade

acabam por converter-se em facadas

no peito 

descoberto ademais

ao provirem dalgum dos meus filhos


Co amor próprio agonizante

—o incessante de mai posto a prova— sinto-me 

derrotada

acaso som um fracasso

como educadora pergunto-me

consciente de que o livre alvedrio

está aí

nesses seres que nascêrom de mim

assumo a sua imperícia

deixando de parte toda malícia

mas dói

por vezes até corrói

a carapaça de mulher forte

e manhá hei retomar o meu papel

reunindo o que me ficar de dignidade


Um dia talvez após a minha morte

reconstruirám de maneira mais fiel

ao original a minha imagem errada



by Eva Loureiro Vilarelhe





2.9.22

Se calhar ('in.timo' 7)










Varada dormitando no teu mole ventre

esmagada por umha cefaleia de baleia

afagas-me injetando paz e tranquilidade

diretamente na minha saltitante jugular


Agradeço humedecendo o teu doce peito de sal

mesmo que com isso agudize a dor de cabeça

entendes-me como ninguém sabes bem ver em mim que

desejaria ter mais alguém sobre quem me deitar


Imagino-me entom louvaminhada tamém polas costas

e por um efémero instante adivinho no teu olhar

um feliz se calhar um dia que me impele a sonhar



by Eva Loureiro Vilarelhe





15.8.22

Pestanejo ('Nacos' 9)








(ecoando-me a mim mesma)




Por vezes digo certas cousas 

tam cruamente que me assusto

nunca me cheirou bem a carne fresca

mas nem falar de fazer-me vegana

porém nem pestanejo 

perante umha ferida aberta

tremenda vontade de meter o dedo

de embadumar-me de sangue

e enjoar co cheiro a ferrugem


Por vezes enfadam-me certas cousas

tam iradamente que me asusto

nunca me reparei parelha a el nisso

mas nem falar de renegar do pai

porém nem pestanejo

perante o vazio que deixou

tremenda vontade de recuperá-lo

de trazê-lo de volta comigo

e enjoar co cheiro a fuligem



by Eva Loureiro Vilarelhe





21.7.22

Seguimos ('in.timo' 6)










Concerto à fresca

éons sem vir a um à noite

sentada na varanda

observo os pares dançar

seguras-me pola cintura

nom vaias cair dis

eu procuro apoio no teu ombro

como desde que te conheço

saudamos em volta ao acaso

ensimesmados na música

poucas caras juntas comentas

é difícil co correr dos anos

digo consciente do teu olhar

fios de prata na almofada

e ainda assi seguimos



by Eva Loureiro Vilarelhe





11.7.22

Estio ('in.timo' 5)










Está calor

está quente aqui

neste meu estio

tórrido e calmo

abafada na sesta

é agora que o estimo

está na hora certa

estou direi no canto

de está o estio

está quente aqui

está calor


by Eva Loureiro Vilarelhe





29.6.22

Varada ('in.timo' 4)







Dorna encalhada na areia

que nem navega nem pola terra

avançar pode à baixa-mar

olhando o céu que impávido assiste

à minha interminável agonia

o meu corpo em descomposiçom

por falta de uso apodrece

sinto a comichom impertérrita 

moscas larvas pássaros pulgas

e demais fauna marinha

dando boa conta das minhas vísceras

o cheiro afugenta ao resto de seres

vivos ou mortos cos que me relaciono

fico soa

esquecida e fora deste mundo

negando-me a sair do meu

prefiro continuar como estou

extinta em vida

varada em ti


by Eva Loureiro Vilarelhe





15.6.22

Alegria ('in.timo' 3)






Um raio de sol

no vao da porta

A brisa marinha

enleando a caluga

Um rastro de folhas secas

crepitando incertas

A banana do teu sorriso

no começo dum novo dia

Agora que mo perguntas

semelha que é alegria

Manhá igual che diria

que me provoca tristura

O raio do sol

espreitando da porta

A minha caluga mesta

de lacrimal salitre

O vento arrastrando

incerto tanta folhagem

O teu sorriso congelado

após a noite de insónia


by Eva Loureiro Vilarelhe





1.6.22

Olhos que nom vem ('Cantos contos' 5)







A avoa ficou cega por mor do glaucoma. Ela explica-o dum jeito mais prosaico: “Apagarom-se-me todas as lâmpadas, minha filha, e som tam antigas que já nom se fabricam…” Papai viu-se obrigado a ingressá-la numha residência, aterrado ante a ideia de que ficasse soa mentres el ia trabalhar. A sua mai ocupava-se da casa e preparava o jantar ou a ceia —em funçom do seu turno na fábrica— e, por moito que ela insistiu em que o seguiria fazendo às apalpadelas, nom houvo maneira. O hipocondríaco do seu único filho nom suportaria que lhe acontecer qualquer cousa estando ausente. 


Tivo a lucidez de resgatá-la justo antes da hecatombe. Cheirou-no quando começarom correr rumores sobre o que estava a acontecer em Wuhan, e que nom seria moi disparatado que aquela epidemia se estendesse como a pólvora. Os cépticos citavam o bluff da gripe aviária para escarnecer do seu instinto previsor; no entanto, meu pai foi dos que fijo aprovisionamento de medicinas e alimentos mesmo antes de que saltassem os primeiros alarmes. E trouxo à avoa de volta a casa aginha, em quanto tivo o búnquer preparado para o confinamento.


Nom pudem unir-me a eles até à instauraçom da nova normalidade trás a desescalada, em vista de que a minha comunidade de residência nom levava o ritmo parelho à nossa. Por prescriçom facultativa, passei as tardes a ler-lhe e fazer-lhe companha à avoa. Umha vez superada a saudade polo largo tempo separados, era a escusa perfeita para que o meu pai saísse passear tranquilo e mesmo ousasse tomar-se umha cerveja nas esplanadas reabertas cos seus ex-companheiros de trabalho. A sua empresa nom levou a cabo ERTEs, ainda que si acelerou a reforma daqueles empregados que estavam a pique de cumprir coa idade mínima requerida. Papai alegrou-se de que lhe tocasse a el. Nom polo cansaço acumulado despois de mais de quarenta anos cotizados, senom porque assi nom teria que contratar ninguém para ocupar-se da sua mai. 


Via-se que botava em falta as rotinas da sua época em ativo, ainda que o encerro obrigatório ajudou-no a sobrelevar o reajuste à sua imprevista realidade. Para mim, supujo todo o contrário. Perder à Leire nesses momentos foi devastador. Daí que o meu amigo Jon —psiquiatra de profissom— me aconselhasse estreitar os laços familiares, debilitados pola minha situaçom laboral, que mal me permitira regressar à nossa cidade de origem em datas sinaladas. Tam só polo Natal —e algumha que outra escapada no veram— era quando papai mais a avoa me tinham diante ao vivo. Até que o inesperado vírus COVID-19 trastocou todos os nossos planos, e arrebatou-me o amor da minha vida.   


Três meses bastarom-me para saber que era ela. Bem, tecnicamente dous, porque o último estivemos separadas. Nunca entendera o das videoconferências até entom. Nom me queixava por que o telefone me espertasse às tantas, moi pelo contrário, agradecia-lho imenso —e com conhecimento de causa: despois nom colheria o sono de novo e esse dia estaria derrotada diante do computador—. Leire telefonava sempre que podia, durante os seus escassos e intempestivos momentos de relax. Eufemismo para os efémeros cinco minutos que se permitia o luxo de parar a máquina para recuperar folgos. Nem sequer entom se desprendia da equipa de proteçom. 


É um modo de dizer, tocou-lhe lidiar coa primeira onda de casos e tanto ela como o resto do persoal do hospital virom-se abocados a responder à beira do colapso, sem estar devidamente preparados ante a falta de material de todo tipo. Trás dumha viseira de plástico improvisada —usando as capas dum memorandum coladas a um diadema— e o par de máscaras —que tempo despois soubemos eram absolutamente inefectivas e provocarom que se contagiassen centos de sanitários de igual modo que ela—, era testemunha de como a sua olhada penetrante se desvivia por nom perder nem um detalhe das minhas facçons.

 

Apenas comentava nada de si mesma, só me pedia que falasse. “Conta-me qualquer cousa, o que for…”, isto vinha justo a seguir do “Olá, peque, estranho-te tanto!” Era o único que lhe dava tempo a dizer antes de que se lhe desbordassem os olhos de lágrimas. Eu tragava saliva e esforçava-me por fazê-la rir cos disparates que recopilava a diário. Consciente de que Leire é fria como umha pedra de gelo no quirófano, sabia que nom chorava por mera pieguice, como fazia eu mesma vendo as notícias da noite. Senom de raiva e impotência, ante o ingente número de mortos que se viam incapazes de refrear. “Nom saias para nada!”, era a sua maneira de despedir-se, feliz de que me queimasse as pestanas de tanto telecomutar. Eu quadrava-me como se estivesse ante o sargento mais severo e ela dava o sinal de ‘descanse’ cum par de dedos na têmpora. 


Ainda sonho com esse gesto. Nom podia ver-lhe a boca mas, pola posiçom das suas pálpebras, reconhecia que estava a sorrir. E a mim derretera-me a primeira vez que estendeu na minha frente o seu maravilhoso sorriso. Jamais voltarei vê-la sorrir. Jamais voltarei vê-la. Jamais voltarei sorrir. O meu pai está demasiado afetado para notá-lo, e o único bom de que a avoa tenha ficado cega é que agora nom se dá conta de que já nom som quem de sorrir. Olhos que nom vem… 



by Eva Loureiro Vilarelhe