21.9.21

Cousas pequenas ('Nacos' 6)











Ela botou em falta a carícia

quando os dedos del voltarom à folha de jornal


Composiçom de lugar:

final de um dia tam duro como qualquer de entre semana

ela trisca numha cenoura corrigindo exames cos pés em cima da mesa

el revisa as notícias passadas sorvendo a infusom junto aos pés descalços dela

demasiado cansado para preparar umha ceia em condiçons

demasiado ocupada para preocupar-se polas queixas do seu estómago 


Situaçom sentimental:

por vezes nem lembram quantos anos levam de convívio

rotinas estabelecidas desde há milénios

éons de tarefas domésticas sobrelevadas a médias

o tempo que se escapa sem deixar tempo para mais nada

onde fica o amor a estas alturas?


Na atraçom mútua

na impossibilidade de nom tocar-se estando perto

na preferência acomodatícia das consabidas posturas

na serenidade que transmite reconhecer a pele do outro


O contato

umha dessas cousas pequenas tam necessárias ainda para a vida



by Eva Loureiro Vilarelhe










9.9.21

Intimidade relativa ('O coelho da Alice' 6)











Desde que Marga entra pola porta, a sala ilumina-se. Nom só a causa do seu carácter alegre e extrovertido —todo o contrário ao da sua companheira de andar—, senom precisamente porque é a luz que guia a existência de Judite. Judite ergue-se moi cedo. Chega ao seu posto na linha de produçom antes de ser dia, mesmo nos meses cálidos em que o sol madruga canda ela. Marga a essas horas dorme a perna solta, mas nem por isso Judite ousa achegar-se a espreitar no seu quarto. Prefere imaginá-la. Como a imagina dando aulas cada tarde no centro de estudos onde malgasta a sua valia. Ainda nom conseguiu convencê-la para que se assegure o futuro opositando, é demasiado preguiçosa para afrontar o temário, e para que ia querer ela incorporar-se ao ensino público se nunca gostou de abrir as pálpebras antes das dez da manhá. Está melhor na academia trabalhando despois do jantar. Até hai vezes em que tem margem para fazer a compra ao sair, e apressura-se coa ideia de preparar ela a ceia.


Ceia coa que pretende agradecer-lhe a Judite que se ocupe da maior parte das tarefas da casa. Esta dispom de mais tempo ao jantar na cantina da fábrica. Mesmo que se bote umha merecida sesta no sofá, é capaz de deixar o piso reluzente num chiscar de olhos. Com dizer que sempre a encontra lendo um dos grossos volumes da sua biblioteca. A música clássica quase imperceptível envolve essa atmosfera de tranquilidade que tanto agrada a Marga. Por moito que poda semelhar que nom, a julgar pola radical mudança que provoca que ela faga acto de presença. O seu telemóvel vomita a todo volume o que marca tendência em Spotify, daí que se veja obrigada a vociferar as últimas novidades a propósito dos seus malogrados estudantes —que jamais superarám esse ingente número de matérias sem apoio extra—, intercalando entre os seus erráticos comentários umha pergunta retórica sobre o que lhe apetece cear, quando em realidade já escolheu de antemao o menu para ambas. 


Ambas saúdam-se com um sorriso. Judite nem responde, é toda olhos para ela. No entanto, fechara-os ao sentir a chave na fechadura. Inspirou profundamente como preparando-se para o que lhe esperava, mas era para apreçar com maior nitidez se cabe o recendo que desprende a sua amada. Porque amor —moito amor— é o que sente por quem só vê nela umha boa amiga, com quem partilhar gastos de aluguer e facturas várias, ademais de com quem —rara vez— desabafar. Porque, a fim de contas, quando é que a vida resulta insofrível para alguém que costuma vê-la de cor de rosa? Rosa tamém é a camisola que leva posta Marga e tanto lhe favorece à sua pele tostada. A sua melena ondulada acaricia o pescoço de Judite, quando lhe planta um casto e sonoro beijo na cara a quem se vê tam surpreendida e afortunada quanto Fred Astaire. Judite tem a sua Rita Hayworth particular. A sua Rita. De feito, Rita é como a chama em segredo, Marga é para todos os demais. Só é Rita para ela. Para quem melhor a conhece e mais a desfruta na intimidade. 


Intimidade relativa, por suposto. Que mais desejaria Judite que poder assistir a umha intimidade completa, mesmo que nom intimasse com ela. Contentaria-se com contemplá-la —como fai sempre—, mas em todo o momento e lugar. Sem quartos separados, sem camas distantes, sem inoportunas prendas interiores. Nua ante ela. A sua deusa completamente espida ao alcance do seu tímido olhar. Consciente de que sonha desperta, regressa ao prato onde bate ovos umha adorável mao amiga que lhe fai a boca auga. Marga continua a falar —nom parou um segundo desde que regressou—, Judite reflexiona sobre o poderio dessa voz que a embriaga, que jamais se ressente apesar das horas a fio que a usa a sua dona. Ela, em silêncio, assente.        


Assente, sem atender em excesso às histórias que lhe está a relatar. Nom lhe interessam as suas relaçons sociais, para quanto mais as suas aventuras amorosas —que elimina do seu pensamento de imediato—, nada alheio a elas duas lhe importa em absoluto. Porque sabe que algum dia desaparecerá da sua vista o único que dá sentido à sua vida. Sabe que Marga é demasiado bonita para ficar soa. Que a sua situaçom atual é tam circunstancial como transitória. Que igual que agora a Marga lhe convém conviver com ela, chegará o momento da despedida. E quanto menos consciente seja Judite de que a data limite se aproxima, tanto melhor. Afastar a dor do esperado final, é o seu objetivo. Assi como desfrutar da felicidade dumha existência em comum que nom é tal. Tal como agora, atenta à inexperta e voluntariosa beleza que se desenvolve com torpeza na estreita cozinha do seu modesto apartamento. A quem lhe vai abrir o apetite umha insulsa tortilha quando se pode saborear a cozinheira comendo-a cos olhos?  






by Eva Loureiro Vilarelhe