15.2.21

Saída ('Em suspenso' 20)







De forma paralela

ao secretismo insolidário

entorno à ansiada vacina

redimidora da humanidade

mantés o teu mutismo


Egoistamente

hermético e inatingível

chantar-me a agulha

será bem mais prazenteiro

do que descobrir o teu mistério


Efeitos secundários desconhecidos

em ambos casos

arrisco todo apostando por ti

sem perguntar-me se paga a pena

continuo adiante


Nalgum momento encontraremos a saída

deste impasse  



by Eva Loureiro Vilarelhe


  


14.2.21

Apocalipse nau ('Em suspenso' 19)







Perante os cogumelos inesperados

que se reproduzem em tempo seco

ainda hai quem se surpreenda

da nossa insensatez congénita


Tamém hai quem pretende pôr-se

a salvo (ou em ridículo)

construindo a sua particular nau

pronta a afrontar a apocalipse


Apocalipse nau 

batizo eu (sem ofensa a Francis)

desejando que Noé nom levante cabeça

ante o dilúvio de novos casos estivais

porque precisamos férias e alternar demais


Era inevitável que se propagasse de novo

com tanto tonto à solta por aí diante

mediante tanta mao tonta solta à toa

o pior para os de sempre coma sempre


Esses que se baseiam na razom e a defendem

da falácia que corre mais que a pólvora  

incapazes de atalhar o surto de estupidezes

que sementarám mais morte da que vem de série

no vírus este



by Eva Loureiro Vilarelhe




13.2.21

Ira ('Em suspenso' 18)







Passado o tempo de letargo

continuamos cegados polo sono

da recente e obrigada hibernaçom

espreguiçando o corpo por capas

como cebolas postas a secar

no recanto mais escuro do celeiro


Coa aplicaçom da sociabilidade

relegada a tal flagrante desuso

que nos aconselha o sistema operativo 

desbotá-la definitivamente para o limbo

moderno onde vai parar todo o desnecessário

na nuvem terminará por desvanecer-se

entre as flamantes memórias já caducas

que acumulamos em cirros de desfeitos


O que dantes consideraríamos pobre ambiente

semelham-nos agora torrentes de gente

infestando o escaso espaço livre

e apropriando-se do nosso vital ar

imprescindível para transpirar

através da máscara do castigo


Havemos de pagar por todos e cada um 

dos pecados cometidos

esses que desculpamos e jamais reconhecemos 

menos ainda perante a todo-poderosa 

Mai Natureza

recrudescendo ainda mais a sua compreensível 

ira

durante o nosso bem merecido juízo final



by Eva Loureiro Vilarelhe




12.2.21

Fame negra ('Em suspenso' 17)







Apetites desatendidos

por desidiosa preguiça

ou simples fadiga


Negas o evidente

com essa veemência

que te caracteriza


Seguro de ti sempre

adorando o meu corpo

nom só de pensamento


Moitas vezes de palavra

quase nunca de obra

a miúdo de omissom


Porque omites jazer comigo

à mínima ocasiom

o teu desejo obnubilado


Resultado: fame negra

à que me condenas

polos séculos dos séculos


Amém 



by Eva Loureiro Vilarelhe



11.2.21

A fio ('Em suspenso' 16)








Amanheces com cara de ferreiro

auguro um dia bronco

marcado polo fastio da quotidianidade

perdura na minha boca o gosto a ferrugem

dos infames dardos envenenados

disparados na noite passada em branco


Sei que será amargura de pouca dura

que recuperaremos logo a harmonia

esquecidas aginha todas as desavenças

no entanto detesto este desassossego

no estómago e o imenso peso no peito

por ter dito o que nom sinto nem penso


Envergonhada por ter sido do mesmo jeito

singular testigo do acontecido

ao ver-nos rebaixados e indignos

deste amor que superou durante meses

vinte e quatro horas de convivência a fio

sem assinar a sua sentença de morte



by Eva Loureiro Vilarelhe




10.2.21

Qual besta encurralada ('Em suspenso' 15)







A atmosfera opressiva

que precede a umha trevoada

lembra-me indefectivelmente

os intermináveis dias de espera


Naquela quarentena em que nos jactamos

de salvar vidas

polo mero feito de pasmar no sofá

a sufocante sensaçom de alerta

contínua

acelerou o meu torrente sanguíneo

ralentizando o raciocínio


Qual besta encurralada

agora só respondo a estímulos

e cheirar o perigo iminente


obriga-me a fugir sempre

pouco importa a direcçom 

que decide tomar o meu corpo


Eu sigo unida a el de milagre

hai tempo que resolveu a minha mente

refugiar-se noutra dimensom



by Eva Loureiro Vilarelhe


 


9.2.21

Confissom ('Em suspenso' 14)







–Às vezes invejo o conclusivo da morte

A certeza


Contenho o alento diante da pantalha

as imagens e os sons sucedem-se

mas nos meus ouvidos ecoa esse diálogo

essa confissom a meia voz 

entre dous desconhecidos 

que ainda nom sabem que se amam


Igual que eu te amo sem saber

inconscientemente

em (e com) todos os sentidos

de ser correspondida tivesse oxalá 

a certeza

da morte conclusiva ou (que invejo às vezes)



by Eva Loureiro Vilarelhe





8.2.21

Adolescentes ('Em suspenso' 13)







Vemo-nos sempre num banco do parque

como dous adolescentes fugidios

obrigados a manter as distâncias

o que darias por conseguir afagar-me

a mim que nem me atrevo a olhar para ti

nom podemos descobrir o mundo juntos

por se o mundo nos descobre a nós



by Eva Loureiro Vilarelhe




7.2.21

Timorata ('Em suspenso' 12)







Fugindo das redes

das marés de lezer enlatado

nunca antes o tacto do papel

foi tam querido tam arelado

único meio de combater

o fastio


Imperiosa necessidade de evasom

enterrando a cabeça nos livros

qual timorata avestruz

desconectada

e liberada por fim

da tirania da informaçom



by Eva Loureiro Vilarelhe




6.2.21

Asfalto ('Em suspenso' 11)







Ruas desertas

comércios pechados

animais à solta

invadindo o asfalto

da cidade dormente 

estranha sensaçom pós-apocalíptica

que de repente estranhas

quando se rompe o silêncio

e o barulho do trânsito

das vozes e dos passos em volta

recuperam o território perdido

animais ao monte

abandonando o asfalto



by Eva Loureiro Vilarelhe




5.2.21

Cura ('Em suspenso' 10)








Nom somos todos iguais

tampouco a morte nos equipara

os ricos seguem a ter as de ganhar

mesmo se tamém lhes afecta a pandemia

o pior é para grande parte da maioria


para os que ficam desprotegidos

para os que ficam desempregados

para os que ficam desamparados

para os que ficam deslocados

para os que ficam desenganados

para os que ficam desmotivados

para os que ficam desesperados


Nom aparecerám nos livros de história

as verdadeiras vítimas deste desequilíbrio

a balança inclina-se sempre para o mesmo lado

e a soluçom nom figura no dicionário capitalista

a desigualdade só se cura com equidade  



by Eva Loureiro Vilarelhe




4.2.21

Amigas ('Em suspenso' 9)








Como um sopro de ar fresco

no meio do calor da noite

foi sentir a vossa presença

na distância


As tentativas desamanhadas os falhos

de conexom ou mesmo as quedas da rede

nom estragarom o nosso ansiado encontro 

virtual


Conversar convosco despois de tanto tempo

e perguntar-nos todas como era possível

que nom se nos tivesse ocorrido fazê-lo 

moito antes


Havemos de repetir dixemos convencidas

por fim a modo de desganada despedida 

apesar de levar horas a eito de colóquio

sem descanso


Nom repetimos pois preferimos encontrar-nos

frente a frente à primeira ocasiom ajeitada 

com prudência devida 

distância de segurança

e máscaras


Gostamos de nos ver pese a nom poder tocar-nos

os abraços botam-se em falta mas moito mais

partilhar entre amigas umha boa tarde repleta

de gargalhadas



by Eva Loureiro Vilarelhe




3.2.21

Cada segundo ('Em suspenso' 8)








Qual selvagem animal enjaulado

subo polas paredes do quarto

momentos em que nem parada tenho

e outros tenho de profundo letargo


Os dias se sucederiam idénticos

de nom ser pola paulatina carência

e a peremptória necessidade de sair 

para aprovisionar-nos de alimentos


A mim nem isso se me permite

etiqueta de risco atemorizante

que paralisa qualquer tentativa

de afrontar a anormalidade imperante


Por causa do vírus dá-se o ano por perdido 

quando eu me pergunto como foi cada segundo

dos que finarom sós abandonados e moribundos

longe dos seus frio final cruel e imerecido


Daí que contradiga a quem diga o duro

que resultou para todos ficar na casa

nada comparado com quem desafiou a morte

arriscando a vida a diário por salvar-nos



by Eva Loureiro Vilarelhe





2.2.21

O meu ofício ('Em suspenso' 7)









Que a um futebolista lhe paguem tanto

nom implica que o seu seja um trabalho

palavra de filho


Levas razom, o meu ainda é pior

em vista de que nem paga obtenho


Facada no coraçom

quando quem pom em questom o lote de tempo

que passo sentada diante do computador

dando-o por perdido ou comparável ao que fai el

bendita adolescência

anotando num caderno os resultados dos partidos


Criar corvos teria sido bem mais prazenteiro


Nom lho tenhas em conta, nom sabe o que di

pai consolador 


Mas o que di é o rum-rum do que a maioria pensa

escrever nem presta nem mesmo é trabalho regrado


No entanto, daria a vida por el

sangue do meu sangue 

tanto como polo meu ofício



by Eva Loureiro Vilarelhe




1.2.21

De boa fé ('Em suspenso' 6)






Os experimentos culinários som o meu

se nom sei o que fazer em todo o dia

um desses típicos a-ver-o-que-sai-daqui

e pronto

a tarde voa e os aplausos das oito

surpreendem-me atarefada na cozinha

enfarinhada ou lambendo os dedos


Mas desta vez nom dei atinado co suflé

encontrei grumos no creme de cabacinha

e o biscoito de laranja desinchou tanto

como o meu ánimo ao tirá-lo do forno 


Ainda bem que andavas morto de fame

louvando os meus desastres de boa fé

e sorvendo as minhas lágrimas a beijos 



by Eva Loureiro Vilarelhe