27.5.21

Mochila ('Feridamorte' 14)






Nada se supera

todinho deixa pouso

os meus mil milheiros de fundos de cuncas

pesam um quintal a estas alturas


Levo essa mochila perene às costas

daí que procure fixar a vista à frente

olhar o passado fai doer as cicatrizes

e a última vai demorar o seu em sarar


Se é que um dia cura o meu maltreito coraçom

de passarinho ferido que nom se rende

bate forte e rápido na procura de ninho

onde reinventar o arelado futuro prometedor


by Eva Loureiro Vilarelhe





17.5.21

Ti si que me entendes ('O coelho da Alice' 5)









Espertei notando o agradável calor do seu pequeno corpo enroscado junto às minhas pernas. Havia demasiado tempo que nom durmia tantas horas seguidas e custou-me centrar-me, olhei o relógio e espreguicei-me ainda atontada. Tinha turno de noite e como nom me apura-se ia chegar tarde. Ergueu as orelhas de imediato ao sentir as chaves na porta. Afaguei-lhe a cabeça tentando tranquilizá-la. “Nom vai aparecer por aqui até que me vaia”, sussurrei convencida, espreitando os seus passos pola sala. David tarda bastante em voltar a dirigir-me a palavra despois dumha discussom. Por vezes, mais dumha semana. E isso que el discutir nom discute. Limita-se a levar-me a contrária com condescendência sem elevar o tom nem o mais mínimo. Só eu posta em ridículo —tanto polos seus comentários desdenhosos, como polo meu comportamento—, gritando e gesticulando como umha possessa.


A cadela assistira à minha patética actuaçom essa mesma manhá. Tremia como umha folha sem atrever-se a mover do seu sítio, no canto da cozinha onde tem a cesta e a comida. Alterada como estava, nem reparei em que manchara o piso fazendo as suas necessidades ali mesmo, cousa que nom passou despercebida para el, e aproveitou para botar-me em cara que se me ocorresse meter aquel bicho nojento na casa sem consultar-lho antes. Tamém discutira com David o dia que me tropecei com ela num soportal. Saíra a comprar no súper e de repente caiu umha tromba de auga, procurei refúgio até que escampara, e ali estava aquela bola de pelo enchoupada olhando para mim cos olhos mais tristes que vira na vida. Tentei dar-lhe calor co meu corpo metendo-a baixo o impermeável, e voltei para a casa esquecendo a excusa para fugir do seu lado.


El demorou-se a abrir a porta, a sua inseparável cunca de cacau quente na outra mao. Coas pressas, deixara as chaves e recriminou-me a minha ineptidom na sua gélida olhada. Até que assomou o focinho e el torceu o gesto. Saltou-se a sua norma de punitivo silêncio para reprochar: “Nem filhos, nem mascotes, lembra. Já me chega com ter que coidar de ti.” A cadela nom se assustou ante a sua voz queda, como si notei o seu arrepio quando abriu o meu chuvasqueiro para vê-la melhor. “Nom podia ser mais feio o bicho…”, resmungou dando-nos as costas sem mais. Soubem nesse momento que ela podia ver em David o que o resto nom via.


As minhas amigas sempre me diziam que me queixava de vício. Que já gostariam elas de que as suas parelhas fossem tam conversadoras e compreensivas como David, a quem consideram tam doce como o cacau que bebe. Cheguei a pensar que era cousa minha. Que eu era a única culpável da decepçom tatuada no seu rosto por ser como som, um desastre para tantas cousas que el domina à perfeiçom. Foi ela quem me demostrou que eram os demais os que estavam cegados polo brilho do seu intelecto e dos seus refinados modais. A veterinária constatou o que nos temíamos: estava desnutrida e fora maltratada com sanha. Com qualquer ruído imprevisto fugia de imediato, tremendo e fazendo-se umha bola como o dia que a encontrei, nesse caso tremelicando por mor do frio. O seu ajudante colheu-na com mimo no colo, querendo saber qual era o seu nome. 

—Parda —respondim sem pensar, gostava dessa cor indefinível da sua agreste mata de pelo, e até semelhava um pardal do pequeninha que é.           

—Moi bem, Parda, agora vou dar-te um banho moi especial para desparasitar-te, e que che parece se despois te peiteio e ponho-te mais bonita do que és? —perguntou-lhe com todo o carinho que botara em falta durante a sua breve e fatídica existência.

—É um cachorro ainda, e suponho que nunca a vacinarom… assi que iniciaremos o protocolo básico desde zero, se estás de acordo —a veterinária deu-me a seguir as indicaçons pertinentes para tratar de que recobrasse a saúde o antes possível. 

Parda evoluiu rápido e passava o pouco tempo que paro na casa colada a mim. David comentou que agradecia que desaparecesse do mapa quando eu faltava, demostrando com isso a sua inteligência canina. E que eu nom estava errada. 


Abrim o armário na procura do meu uniforme de reposto, já nom tinha margem para mudar-me ao chegar. Ela aproveitou que deixara a porta aberta para meter-se, escondendo-se aginha dentro da minha mochila da piscina. Assi que era esse o seu refúgio. Eu levava tanto sem fazer desporto como sem durmir de dia ou à noite. A minha médica receitou-me as típicas pastilhas que preferim nom usar, porque me advertiu que nom poderia deixá-las de golpe. Verificar no espelho as olheiras e o fraca que estou, obrigou-me a dar-lhes umha oportunidade. A discussom desta manhá deixara-me tam exausta como vazia por dentro e, com semelhante ánimo, nom ia poder descansar. Desesperada dando-lhe voltas sempre ao mesmo. Por que? Que foi o que figem desta vez? Nom o entendia… Jamais o entenderei. Parda assomou o focinho a modo de despedida. Os seus olhos estavam imensamente tristes, mas nom igual que antes. Nom por ela ao menos. Agora que me tinha a mim, parecia compadecer-se do meu sofrimento. 

 

“Ti si que me entendes”, dixem-lhe ajoelhando-me para afagar a sua cabecinha meio escondida. Eu tamém a tinha a ela. Nesse momento dei-me conta do estúpida que estava a ser. A sesta auto-imposta despejara-me por fim o entendimento. Colhim um par de mudas e metim-nas ao seu lado, ela mexeu a cola esperançada. Fum buscar a escova dos dentes e o livro da mesinha de cabeceira. Marquei o seu número maldizendo as horas, deita-se cedo e igual era demasiado tarde para avisá-la. 

—Importas-te se fico aí um par de dias? 

—E o resto da vida, bem o sabes! —afirmou alegre— Ai, filha, já me tardava que o deixasses…

Por que será que me confesso coas amigas e sempre esqueço a quem melhor me conhece?

—E nom poderás vir polo hospital antes de que comece o meu turno? Tenho a Parda comigo e… vaia, agora que o penso, igual é um problema para Mona! 

A gata siamesa da minha mai —que sorri como a dama do famoso quadro de Da Vinci— é bastante arisca cos desconhecidos. A David sempre lhe bufa… ou será porque ela tamém…? Está visto que a única que nom vê os sinais som eu. 

—Nom te apures, Mona vai velha e há de agradecer a companhia tanto coma mim!

O seu tom cantareiro agoirava o que nesse intre dei por seguro: havíamos de ser mais felizes as quatro juntas.   



by Eva Loureiro Vilarelhe




7.5.21

Voragem ('Feridamorte' 13)









Desconfias

primeiro da sua veracidade

despois da sua consistência

e por último da sua vigência


Porfias

em impor-me o teu conceituado amor

espelhado exemplo a seguir

fio de prata que se desbarata


Renego

do teu oprimente tormento cego

da tua voragem de despropósitos

do sem sentido do teu acoso e


Derribo

retrotraindo-me ao meu estádio primigénio

casulo de borboleta mestiça com vaga-lume

o teu ignominioso ataque à minha essência


Perdes

demónio de Tasmânia tam seguro de si

eu distante cintilante estátua de sal

resisto e sobrevivo por sempre jamais



by Eva Loureiro Vilarelhe