21.12.22

Noite especial ('Cantos contos' 6)









Dedicado a toda essa gente de Canido 

que fai do bairro um lugar tam acolhedor



O dia amenceu grisalho, umha descortês ventolada desarrumou o recente peiteado de dona Rosa. Mal-humorada e arfando polo esforço de subir a encosta, deu-lhe as queixas à Maia mentres distribuía a compra entre o frigorífico e os armários da cozinha. A gatinha mianhou compreensiva arregalando os seus olhos amarelos, a senhora franziu os dela acarinhando-lhe o lombo agradecida. 

—Ainda bem que te tenho, linda, de nom ser por ti, estaria sempre tam soa… —comentou deitando um pouco de leite na cunca da Maia co galho de premiar a sua lealdade. Ao endereçar a trompicons as costas reparou no calendário: faltavam quinze dias para Noite-boa. Foi em direçom ao banho cismando, no espelho tratou de recompor o cabelo emaranhado. Dinheiro desperdiçado na cabeleiraria… Decidiu que este ano ia ser diferente e foi procurar o que precisava nas gavetas do seu escritório. Duvidou em usar o plural, perguntou o seu parecer, a gata deitada aos seus pés ergueu a testa curiosa. Elas eram duas, concluiu. Copiou o mesmo texto num bom feixe de folhas coa sua bonita caligrafia de feitio antigo. Coa mao a doer —após tanto escrever— preparou o jantar cantarolando. Maia lambia os bigodes tam contenta quanto a sua dona, ainda que por diversos motivos: o guiso de peixe enchia de gostosos vapores a cozinha e havia de saber-lhe a glória…

Essa mesma tarde dona Rosa distribuiu os seus papéis polo bairro, Canido tinha sona de alegre e ela só pretendia beneficiar-se dessa ledícia por umha noite. Umha noite especial que dantes passava acompanhada por familiares. Ao correr dos anos foram desaparecendo aos poucos, uns deixando o mundo dos vivos, outros indo viver longe, e à sua idade já nom estava para ir visitá-los como tinha feito antes de partir a perna. Agora andava mais de vagar e sentia-se demasiado cansada para viajar. Estranhava a casa cheia de gente, umha casa grande de mais para ela soa. Sem os seus pais, sem o home, sem os seus irmaos, sem sobrinhos a quem mimar. Os sobrinhos já tinham filhos grandes e só ela restava dos mais velhos da família. Coas suas amigas sucedera outro tanto, ela das mais novas e a única fora do asilo. Ficara soa, essa era a verdade. Ainda bem que tenho à Maia, repetiu para si.


Aroa acudiu à lanvandaria como cada semana. Encheu a lavadora de moedas e entretivo-se navegando polas redes até que finou a bateria do telemóvel. Tocava esperar ainda pola secadora e a rapaza nom sabia moi bem com que enredar. Começou ler diversos cartazes e anúncios —ofertas de serviço doméstico ou operários de toda a espécie, as mais das vezes—, até que reparou num escrito a lápis com trémulas letras que logrou concentrar o seu irrequieto interesse. “Se estás soa —leu ela— vem passar connosco a Noiteboa”, citava-se a toda a gente para as oito horas da tarde num domicílio particular… essa rua tinha que estar no bairro, sem dúvida, de tanto que lhe soava o nome. No entanto, nom tinha a absoluta certeza e a repentina morte do telefone nom lhe resolveu a dúvida no intre —paciência, Aroa, diria a sua mai de estar canda ela—, mas a sua mai estava a centos de quilómetros e, como nessas datas tinha que trabalhar, nom se veriam até inícios de janeiro. Co seu pai nom lhe apetecia celebrar nada, anojada ao vê-lo tam acaramelado coa sua última parelha —apostaria o que fosse a que ela era mais velha—, e aproveitaria para ficar a estudar, o primeiro quadrimestre nom estava a correr tam bem como deveria. E para Aroa era fundamental conseguir boas notas, nom podia permitir-se o luxo de perder a sua ansiada bolsa. 

Memorizou o endereço e foi deixar a roupa limpa no seu quarto, nom tinha moito trato co resto de colegas do apartamento de aluguer e todas voltavam aos seus lares polo Natal. A rua em questom ficava por trás da sua, de feito, tinha passado por diante daquela casa com jardim nas traseiras um lote de vezes de caminho à faculdade. Nom era umha senhora de cabelo moi branco quem vivia nela? Si, essa que tinha um certo ar a avoa de conto. Aroa sorriu para si, a sua avoa materna morrera havia dous anos e era igual de garrida, sempre bem vestida e sempre amável com todo o mundo. Já tinha com quem passar as festas, pensou, tentaria preparar para levar o mesmo doce que lhe ensinara a fazer a avoa e tanto louvava a sua mai.    


Pedro encravou a maos nos petos do casaco, o vento vinha mais frio à tardinha e precisava com urgência de encontrar lugar para passar a noite. Os cartons molhados pola choiva da véspera já nom prestavam e nom dera apanhado outros. Arrepanhou algo que levar à boca nos contentores do lixo, mas nada de caixas nem jornais, devia ter passado o camiom do reciclado. A luz da lavandaria deu-lhe umha ideia —duvidou um instante constatando que nom havia ninguém—, podia aproveitar para aquecer-se um pouco ali dentro. Nem tempo lhe deu a atemperar o corpo, umha parelha carregando com um lote de roupa abriu a porta convidando consigo um remoinho de ar gélido. Pedro apressurou-se a sair liscando —consciente de que a sua fedorenta presença nunca era bem acolhida—, arrincando ao seu passo sem querer umha folha colada no quadro de avisos. A parelha olhava-o mal-encarada, apesar de a folha mais el ter acabado na rua de contado.

Recolheu-na do chao, a falta de nada melhor, dava para meter dentro das calças furadas. Antes de o fazer, reparou no que estava escrito nela.  “Se estás só —leu el— vem passar connosco a Noite-boa”. Era boa!, quem ia querer passar a noite canda el? Afundou o papel entre as pernas agradecendo o amparo de imediato, o vento colava-se por todos os buracos. Para Noite-boa faltava… quanto? Duas semanas?, aventurou. Daqui alá bem poderia arranjar roupa mais decente… lavaria-se bem na fonte antes de a trocar… e mesmo trataria de cortar o cabelo e a barba, nom moito, que co inverno às portas até o pelo do corpo abriga… Que disparate! E logo, ia apresentar-se assi de maos vazias? Centra-te nesta noite, dixo-se anojado consigo mesmo por tê-lo considerado sequera, que ainda nom tés onde passá-la e já está aqui. 


 Mabel espertou cedo à manhá seguinte. O vento acalmara um bocadinho e o sol brilhava já a essa hora, mas um frio de morrer estava à sua espera na rua. Esfregou as maos embutidas nas luvas e desatou a correr, primeiro de vagar, aginha acompassando o rápido latejar do seu coraçom. Os nove quilómetros passarom num suspiro, o que lhe levou chegar à Malata indo polo passeio de Canido, seguir por diante do Porto de Corujeiras e percorrer o muro do Arsenal até à porta dos Estaleiros de Esteiro, e voltar. Parou comprar uns croassans para o almorço, a padaria abriu para ela e a empregada saudou-na admirada polo seu esforço. Porque tinha que trabalhar, do contrario nom madrugaria tanto… e moito menos para correr! Mabel apressurou de novo o passo, um arrepio ao notar o suor arrefecido nas costas, ansiava chegar à casa e entrar em calor baixo a auga quente. Demorara-se em excesso comprando o pam, por culpa dum cartaz que lhe saltou nas vistas. 

“Se estás soa —leu ela— vem passar connosco a Noite-boa” Nom estaria soa. Os cativos mais ela botariam em falta ao Carlos, isso si, que anda embarcado até à próxima primavera. O primeiro Natal sem seu pai. Ela sabia o que era isso, o dela morrera havia anos e ainda nom estava afeita a que faltasse. Coa mai enferma, tocava celebrá-lo na casa da sua irmá maior, a única que tinha e coa que nunca se dera moi bem. Nom lhe apetecia nada. Carlos era o seu escudo, suportava as brincadeiras do cunhado, nom rifava com ninguém e mantinha o sorriso posto durante toda a velada. Ela ia discutir coa Carminha antes sequera de sentar a cear, estaria amuada na mesa, e os miúdos nom iam desfrutar como deveriam da sua noite especial. Em fim, era o que havia… Isidoro si que merecia nom passar a Noite-boa só. Parou na sua porta ao subir as escadas de duas em duas segurando bem o embrulho baixo o braço. O velhote demorou a abrir. Sem dúvida estava a ler —tinha os óculos pendurados do pescoço— e olhou para ela sorrindo sem surpresa. 

—Outra vez às carreiras, nom si?

—A ver, —deu-lhe um par de cruassans envoltos em papel que pedira à parte— que o exercício intelectual tamém precisa de energia, aposto a que só tés no corpo o café bebido. E já que estamos, vou passar-che um convite… —envia-lhe nesse instante a foto do cartaz por WhattsApp.

—Ai, Mabelinha, bem sabes que de manhá nom som persoa sem cafeína… —esguio e alto quanto é, pouco come, Mabel já o conhece— que me envias o quê?

Isidoro coloca os óculos na ponta do nariz e move os seus longos dedos polo telemóvel, moi amodinho, até darem coa fotografia. “Se estás só —leu el— vem passar connosco a Noiteboa”

—Um convite para ires a casa doutros, em vista de que coa minha família nom queres nada…

—Boh! E logo que pinto eu na casa de ninguém? Nem na da tua irmá, nem naqueloutra…

—Acaba por ser umha festa do bairro, digo-cho eu, ho!

—Que festa é essa? —umha cabecinha cativa assomou polo oco das escadas.

—Tira para casa, Brais, que vás colher frio em pijama.

—Onde é a festa? —insistiu o pequeno baixando todo o rápido que lho permitiam os chinelos— Convidas ao Doro, e nós nom podemos ir, ou quê?

—Ai, eu só vou se te levo comigo, rapaz, nom o duvides…

—Brais! Nom podes sair assi se eu nom che deixo! Quando nom está mamá som eu a que mando! —a adolescente enfadada descia as escadas tamém em pijama.

—Bem cho sei, que nom será por vezes que mo repetes… —o espilido neno pujo os olhos em branco.

—Bulide para a casa agora mesmo! —rosmou a mai, aquilo estava a piques de converter-se numha reuniom vizinhal.

—Antes falamos da festa! Eu vou co Doro, se vós as duas nom queredes vir canda nós, ide à casa da tia… —o cativo já estava ao tanto de todo despois de consultar o telefone do vizinho, quem tem conta deles sempre que a mai sai atrasada do trabalho— Ainda que eu vos garanto que nom o ides passar tam bem sem nós os dous… —o velhote acariciou-lhe o cabelo despeiteado botando-se a rir.

—Deixa que seja a tua mai quem o decida, rapaz! Duvido que aos teus tios lhes chiste moito que nom vaiades essa noite, e tés que enredar cos teus primos antes que com um velho coma mim, digo eu…

—Os primos já som maiores e só lhe fam caso à Antela, eu como se nom existisse, aliás a eles já os imos ver tamém no jantar de Natal… e contigo passo-o tam bem como co meu pai, Doro, estou desejando que volte para ensinar-lhe o bem que jogo agora às cartas! —um chisco de fachenda assomava aos seus risonhos olhos infantis.


Os dias foram passando e a notícia daquela inusual reuniom estendeu-se de boca em boca polo bairro adiante, mas ninguém falou diretamente coa anfitrioa. O dia de Noite-boa dona Rosa foi ao mercado recolher os últimos encargos. Um tanto nervosa, duvidara sobre as quantidades, e se nom lhe chegava a comida? E se nom se animavam a vir e sobrava-lhe demasiada? Tratou de ocupar a cabeça no prato principal. Ia preparar o típico bacalhau com couve-flor, ovos duros, e a saborosa alhada que lhe dá o seu toque característico. Calculou para umha vintena de persoas, como nos bons tempos com todos os da casa juntos. Pareceu-lhe ver um home rondando polo seu jardim quando voltava das compras. Nom lhe deu maior importância, se calhar andava comprovando se aquel era o lugar de encontro. Já tinha visto nas duas últimas semanas a mais de um achegar-se por diante ou por trás da sua casa. 

Aquilo enchia-a de satisfaçom, a gente estava ao tanto, com certeza. Nom é que lho comentassem, ainda que notava que as conversas se interrompiam ao achegar-se ela. Olhavam-na sem dizer nada —só saudavam se se conheciam de algo mais que de vista—, e continuavam cochichando nada mais afastar-se ela. Por moito que estivesse aterrada por se nom aparecia nem umha alma, já pagara a pena. Estava a desfrutar dos preparativos como havia moito que nom o fazia. Colocara a árvore, um lote de adornos —pola sala de jantar principalmente—, tinha turrom e vários doces preparados —era consciente de que igual vinha com outra sobremesa quem se sentisse na obriga—, e até comprara cava. Melhor nom pensar por enquanto o que é que ia fazer com tanta cousa se a festa resultava um fracasso… polo de agora só tinha motivos para cantarolar mentres preparava a ceia, e pôr-se cada vez mais nervosa à medida que se aproximava a hora marcada.


Aroa foi a primeira a chegar, bastante antes do previsto. Queria ajudar co trabalho da cozinha e isso mesmo foi o que lhe dixo a dona Rosa, arregaçando as mangas nada mais tirar o cachecol mais o agasalho. Estava feliz, dona Rosa tinha mais pinta de avoa de perto. Co seu sorriso de alívio por toda bem-vinda, na sua carinha enrugada de pel de pêssego. Um amor! Tal como a imaginava. A Maia enroscou-se nas suas pernas e entendeu o plural do convite. A velha vivia soa coa sua gata e estava farta de passar as festas sem barulho na casa, explicou feliz de que alguém respondera ao seu desesperado apelo. Tinha umha casa grande e preciosa, ideal para a encher de gente. E Aroa desfrutou tanto ali como de cativa, quando ajudava à sua própria avoa a preparar a ceia para toda a família. Só que desta vez a família seria algo peculiar.

Umha enteira, de início pensou Aroa quando foi abrir, bateu à porta pouco despois. Isidoro —Doro, em confiança—, só ia vir se acompanhado da sua vizinha Mabel, e dos filhos desta, Antela —umha rapaza de treze anos, que olhava em volta um tanto desconfiada, até que entrou naquela ampla sala e viu a árvore e as luzes e a mesa deliciosamente posta— e Brais —um pequeno de sete, cujos olhos transparentavam a emoçom que sentia ante todas as novidades—. 

Nom forom os únicos, havia mais gente atrás deles à espera de entrar. Mais vizinhos e vizinhas de Canido, que chegavam sós, ou soas, ou aos pares, ou coa família, porque nom queriam deixar soas nem a dona Rosa, nem à Maia. Trouxerom comida: petiscos, pratos principais, sobremesas. Bebida: garrafas de vinho, de cava, ou de champanha. Mesmo cadeiras, por se nom houvesse suficientes —a Roberto ocorreu-se-lhe tomar emprestadas as do Centro Cívico—, e tampouco faltarom instrumentos musicais. Como é de supor, a rádio local fijo-se eco do acontecimento: César mais Pepa retransmitírom em direto —a todo filispim— boa parte das panjolinhas que se entoárom até bem passada a meia-noite, moitas delas interpretadas polas ressabidas vozes de Muinheiras e Muinheiros do Vento… 

E que foi do Pedro? Aroa foi quem o pescou espreitando entre as roseiras do jardim —sem ousar entrar—. Levou-no direto ao banho do andar de arriba por orde da anfitrioa. Umha vez limpo e perfumado ao seu gosto —esmerou-se co barbeado enquanto Aroa recortava aqui e alá as suas guedelhas—, tinha preparadas prendas do finado marido para mudar-se. Sentou ao lado de dona Rosa, quem lhe fijo prometer que ficaria essa noite a durmir —e todas as que precisasse a seguir—, que ela andava à procura de alguém para reparar a casa, e havia de pagar-lhe um jornal ao noutrora alvanel e agora desempregado. Canido —para além de ter sona por ser alegre— seica é um bairro bem solidário.



by Eva Loureiro Vilarelhe