23.4.25

Chamai-me desastre ('Nacos' 13 )










Percorro o caminho empedrado

andando a trancos e barrancos

sementar infelicidade 

é a minha especialidade

a inutilidade da vida

comigo à vontade fica

se se tratar de urucubaca

de mau olhado ou mera desgraça

nom saberia responder

nem nada hai que poda eu fazer

calamidade é o meu outro nome

desdita o meu alcume e catástrofe

o apelido mas chamai-me desastre



by Eva Loureiro Vilarelhe




13.3.25

Maresia ('Atlântidas' 5)








Mar, metade da minha alma é feita de maresia

—Sophia de Mello Breyner Andresen—


Em calma o meu rosto ante o ar desafia

a revolta interior que porfia


os meus olhos teimando discernir

no horizonte o final da maresia


as minhas maos prestes a fugir

tal que ondas revoltas em maresia


o meu peito ofegante por banir

de si o amor falido na maresia


—co coraçom em nacos no cantil

tal foi a força dessa maresia—


o meu ventre loitando por sair

da sua ensanguentada maresia


os meus pés a ponto de sucumbir

enredados na imersa maresia


da floresta marinha a resistir

por baixo a alma feita de maresia


a revolta própria que porfia

da minha calma nom se saberia                                                            



  by Eva Loureiro Vilarelhe




27.2.25

Ouro ('Poesia incompleta para dissidentes' 4)







Nem romanos nem mouros

levárom o nosso ouro


somos nós a estragá-lo

quem anda a dissipá-lo


escorrega céu abaixo

e olhamos de soslaio


cuspimos para acima

sem ter quem nos redima


deixamo-lo escapar

de entre os dedos pingar

e o dia que faltar

nom há prestar chorar


rosmamos por vício

sempre é bom auspício


fai o verde derredor

cantar o reissenhor


os rios baixam fartos

fontes abrem regatos 


flor da vida viçosa

terra sem sede a nossa


de chover a fartar

havemo-nos queixar

e o dia que faltar

nom há prestar chorar




by Eva Loureiro Vilarelhe




31.1.25

A hora de voar ('Atlântidas' 4)





O dia de praia acaba

o último banhista marcha

eu à espreita posicionada


ninguém por cá nem por lá

já chegou a hora de voar


a areia machucada espira

o sol esvaecendo expira

as ondas sem bóias suspiram


ninguém por cá nem por lá

já chegou a hora de voar


entre lusco-fusco e arrepios

trespasso a beira a prancha enfio

rumo ao pico meu desafio


ninguém por cá nem por lá

já chegou a hora de voar


meixelas roivém tal que as nuvens

cavalgo nas cristas a fume

de caroço e oxalá dure


ninguém por cá nem por lá

já chegou a hora de voar


a sós perante a natureza

o mar ensina com crueza

o melhor mestre da firmeza



by Eva Loureiro Vilarelhe




31.12.24

Fogos de artifício ('Fogos de artifício' 8)








Abre-se a flor

abre-se a mente

rebenta o rebento 

começa o deleite

enrugo o lençol 


Na primeira onda

ora expansiva

ora explosiva            

desfruto o momento              

e o prazer afonda 


De pau feito adentro

ou mesmo vazia

a segunda onda

chega e porfia 

a seiva borbota


Pressinto a terceira 

semento na leira 

saliva escorrega

danço ao seu som

redobra o tambor 


Os fogos às portas

—som de artifício—

enésimo anexo

do gozar complexo

meu único vício 



by Eva Loureiro Vilarelhe





19.12.24

Sono ('Nacos' 12 )







Estou sempre com sono

sono que nom sonho

—nom confundir prega-se—

sonho moito e tamém em sonhos

por mor da falta de sono

que diríamos a posteriori

de analisar a situaçom 


Hai animais cujo

período de letargo

dura até nove meses

a gestaçom dum bebé

numha piscadela de olhos

pechar os olhos e esvaecer

a semana de pesadelo

o mês a esquecer

até o ano estragado

dantes julgava que era

perder parte da vida

agora acho umha quimera

evaporar boa parte dela

a sonhá-la doutra perspectiva


Andai com olho intrusos 

—categórica até sangrar—

nunca esqueço umha face

e a saber se vou me vingar

coa escusa da falta de sono

que diríamos a posteriori

de analisar a situaçom 



Eva Loureiro Vilarelhe